sexta-feira, 29 de maio de 2009

À PROCURA DE 50 MILITANTES PARA INÍCIO DE UM PROJETO REVOLUCIONÁRIO

A) INTRODUÇÃO


1) A procura de ativistas revolucionários.

Procuro 50 ativistas que queiram começar um projeto transformador (exposto no item B) visando a mobilização popular, a começar na cidade do Rio de Janeiro, com potencial de alastramento para outras cidades do Estado do RJ e do país, dentro do propósito das mudanças estruturais da ordem capitalista dominante.

2) A única exigência.

A única exigência, para a garantia do desenvolvimento profícuo do projeto, é que cada participante esteja movido pelo sentimento de total altruísmo e gratuidade à causa da libertação popular. Pois, de benefício pessoal, como poderá ser concluído, o projeto só proporcionará a satisfação da certeza de que se está contribuindo concreta e efetivamente para uma futura sociedade fraterna, sem exploradores e explorados, sem opressores e oprimidos, sem algozes e vítimas, ou seja, para uma sociedade autenticamente socialista com democracia direta radical. No mais, o projeto só poderá cobrar muita paciência histórica, esforço e sacrifício de cada um dos participantes e nada mais além disso.

3) O desvínculo do projeto com qualquer organismo político.

Trata-se de um projeto a ser desenvolvido por iniciativa pessoal de seus participantes, motivados pelos seus princípios. Portanto, não é vinculado e nem deve sê-lo a qualquer organização, instituição ou entidade civil, estando, porém, todos os ativistas desses organismos políticos também convidados a participar livremente do mesmo.
4) O caráter estratégico do projeto.

O projeto tem uma perspectiva revolucionária em sua forma e conteúdo mas não garante, por si mesmo, um resultado, pelo menos a curto e médio prazo, no que se propõe a fazer: promover a auto-transformação das massas desorganizadas em povo politicamente organizado. Isto porque, através dele, seus participantes não se disporão a “transmitir verdades” ou “conduzir o processo” mas, tão somente, instigar a população a procurar, a partir da sua própria realidade, demanda e juízo político, as saídas para os problemas concretos que sofre no seu cotidiano. Ou seja, o método adotado não tem a falsa pretensão científica de querer prever ou determinar quais passos deverão ser dados e quando cada etapa será superada na direção almejada. Pois, tratando-se de atingir e envolver politicamente pessoas concretas, considerando as suas virtudes e limitações, e não uma mera massa sem personalidade própria, qualquer determinismo torna-se absolutamente irreal.

Não obstante, apesar de sua imprecisão em relação aos enlaces e desenlaces que surgirão no decorrer da sua execução, o presente projeto se orienta no PRINCÍPIO POLÍTICO que sempre foi o único capaz de efetivamente alcançar concretamente os objetivos estratégicos e revolucionários acima: aquele que radicalmente recusa-se impor soluções, ao contrário, insiste incansavelmente que a própria população, seja em qual estágio político estiver, as procure pelo seu próprio juízo de valor e meios, mesmo que as medidas por ela decididas não sejam consideradas as mais “corretas” e “eficazes” (obviamente, pelo relativo critério de uma vanguarda intelectual).

Portanto, aqui se entende que o papel da verdadeira vanguarda não é o de impedir os eventuais “erros” ou “desvios” cometidos pelas “bases” mas principalmente o de ajudá-las, quando isto ocorrer, a refleti-los para superá-los. A avaliação é que a causa do maior atraso no processo da organização popular e mesmo do seu estancamento nunca esteve nos erros táticos cometidos pela população (até porque ela nunca teve o direito de decidir), mas justamente na arrogância de uma auto-intitulada vanguarda pseudo-iluminada de querer - sempre em vão – obrigar as bases a “acertar”, suprimindo com isso justamente o fim estratégico que teoricamente pretende-se alcançar: um modelo de organização sócio-política radicalmente democrática entre os indivíduos no país, onde todos, efetivamente, tenham garantido o poder deliberativo e executivo sobre os rumos gerais da sociedade onde vivem.

5) O prazo para alcançar algum resultado.

O prazo para o surgimento de algum resultado concreto, após o início da execução do projeto, quanto à efetiva mobilização popular (ainda que de um segmento social situado em uma determinada região da cidade, como após será melhor esclarecido) não poderá ser previamente definido, pelas razões acima já explicadas. Não obstante, a perspectiva que aqui se vislumbra é que com 10 anos de atuação incansável e continua desses 50 ativistas iniciais (podendo e devendo ser este número multiplicado no decorrer do tempo de atuação), preservando-se, obviamente, o espírito original do projeto, já poderá ser verificado um grande avanço nos seus objetivos concretos. Talvez até mesmo um resultado altamente revelador, pois a realidade para os próximos anos infelizmente parece caminhar justamente na direção contrária, ou seja, no sentido do aprofundamento ainda maior da desmobilização das organizações políticas em geral no país.

6) O projeto como referência de ação direta.

É claro que o projeto não tem a ilusão de galgar sozinho um processo de revolução popular em todo o país. Trata-se, propriamente, de promover uma determinada ação direta concreta em alguns meios populares, com uma tática definida que, pretende, contudo, fundamentalmente transformar-se em uma referência concreta de ação revolucionária inspiradora em militantes de outros lugares e meios sociais. O propósito principal do projeto é motivar a disseminação de outras ações revolucionárias, semelhantes ou não a esta proposta, a partir do mesmo método estratégico calcado no princípio libertário conforme já explicado acima.


7) A filosofia inerente ao projeto.

Por fim, é preciso dizer que o projeto se sustenta, ao mesmo tempo, numa fé antropológica e numa utopia histórica. Ou seja, na crença de que os seres humanos e a humanidade podem e, por isso, devem chegar a um estágio de maturidade em sua existência em que os valores da igualdade, fraternidade e solidariedade sejam os que concretamente predominem no coração da maioria e paralelamente definam e aperfeiçoem sempre todas as inúmeras formas de convívio bem como os modelos estruturais de relação humana coletiva. Não importam tanto os nomes que se possam atribuir a esse sistema estrutural-coletivo ou a esse estágio histórico dos homens e das sociedades. Importa fundamentalmente garantir que os três valores acima descritos, um dia, sejam realmente um padrão profundo e predominante em todas os povos e sua forma de vida. Cada povo tem a responsabilidade de construir, do seu modo, esse sonho permanente que é de toda humanidade e de todos os tempos. Nesse sentido é que surgiu o projeto, que abaixo será exposto.



O PROJETO


O projeto, inicialmente, se dá na forma de CAMPANHA (com princípio, meio e fim), esta possuindo algumas etapas que, somadas, alcançam a duração de aproximadamente 11 (onze) meses. O objetivo é repeti-la ANUALMENTE visando atingir, envolver e mobilizar permanente e diretamente as bases populacionais, principalmente os setores populares da cidade do RJ (com possibilidades de extensão futura para outras cidades do grande Rio), suscitando-lhes a progressiva massa crítica, a partir de seus próprios ambientes de moradia. A campanha deverá ser sempre centrada na seguinte questão: QUAL É O PRINCIPAL PROBLEMA SOCIAL QUE DEVE SER RESOLVIDO COM MAIOR URGÊNCIA NA SUA REGIÃO E QUAIS AS MEDIDAS CONCRETAS NECESSÁRIAS PARA ESSA SOLUÇÃO?

Seguem as etapas do Projeto:

1ª Etapa – Reuniões abertas a todas as pessoas e a todos os militantes na cidade do RJ e adjacências (convocados pelo grupo inicial dos 50 ativistas envolvidos) a serem ocorridas nas sedes disponibilizadas pelas entidades civis ou religiosas, para a apresentação, discussão e aprofundamento do projeto, seja na sua forma organizativa concreta, seja no seu propósito tático e estratégico. A idéia é, nesta etapa, criar uma coordenação aberta para a organização executiva de todas as etapas do projeto, não tendo essa coordenação qualquer caráter deliberativo. (duração aproximada da etapa: dois meses).

2ª Etapa – Circulação de um questionário (cujas perguntas são as expostas acima) junto à população, atingindo as pessoas principalmente nas suas próprias residências. Propõe-se concentrar a atuação de todos os participantes numa determinada região de cada vez (p.ex., na Zona Oeste do Rio), priorizando sempre os meios mais populares. Em equipes de dois, ir ao encontro dos moradores, de preferência nos fins-de-semana, deixando, com o responsável de cada residência, o referido questionário e recolhendo-o, preenchido, em momento logo a seguir (no dia seguinte ou semana seguinte). Nesse contato direto, travar debate inicial com os referidos moradores, esclarecendo quais são os objetivos concretos da iniciativa e enfatizando as próximas etapas. (duração aproximada da etapa: quatro meses).

3ª Etapa – Reunião com debate em grupos e Plenária entre os ativistas envolvidos no projeto, acerca das respostas dos questionários e das experiências suscitadas no contato direto junto à população. Aqui será aprovado texto para ser entregue principalmente aos mesmos moradores contatados anteriormente (e extensivo para a população em geral local) informando o resultado da pesquisa e chamando-os para um ato público em torno das principais reivindicações apontadas na pesquisa. A Plenária dos militantes também decidirá o(s) lugar (es) e o(s) dia(s) da realização do(s) ato(s) (a idéia é que cada ato seja feito na própria região dos moradores visitados e no fim-de-semana). (duração aproximada da etapa: 15 dias).

4ª Etapa – Retorno das mesmas equipes (grupo de dois) às residências anteriormente visitadas, agora para entregar o texto, conversar sobre os resultados e convocar os moradores para o ato público, conforme deliberação na etapa anterior. Panfletagem paralela nos ambientes públicos da região (duração aproximada da etapa: um mês e 15 dias).

5ª Etapa – Realização do ato público. Este é o ápice do projeto. Nesse evento o propósito é chamar a atenção da população em geral, para o principal problema destacado pelos moradores bem como suas soluções. Tentar também envolver a mídia. Pode-se fazer, neste momento, uma votação que escolha comissão que irão dar encaminhamento, pelas vias institucionais, às reivindicações específicas em questão (duração aproximada: 15 dias de prazo, para cada ato realizado).

6ª Etapa – Reunião aberta com debate em grupos e Plenária de avaliação geral do projeto (um final de semana). Nessa etapa, a Plenária elaborará documento conclusivo para ser encaminhado, pelas mesmas equipes anteriores e outras novas, às bases populares visitadas. (duração aproximada da etapa: 15 dias).

7ª Etapa – Retorno às bases visitadas, pelas equipes anteriores, para a panfletagem do documento conclusivo elaborado conforme etapa anterior. (duração aproximada da etapa: um mês e 15 dias).



CONCLUSÃO



1) A eficácia do mecanismo da democracia direta.

Feita exposição do projeto, pode-se depreende agora com maior clareza tudo o que foi dito na introdução deste texto. Enfatiza-se nesta conclusão a absoluta importância que o projeto atribui ao mecanismo e processo da democracia direta em todos os passos e etapas do seu desenvolvimento. A escolha dos lugares de moradia para a implementação do projeto bem como o enfoque das perguntas em torno dos problemas específicos locais da população visam essencialmente alcançá-la numa realidade em condições subjetiva e objetiva mais favoráveis para o estímulo à sua participação ativa e envolvimento progressivo na construção da mobilização dentro da estratégia proposta.

Em primeiro lugar, é no ambiente residencial, sobretudo nos fins-de-semana, que a grande maioria das pessoas - sobretudo dos segmentos mais populares - exercem e dão vazão às suas dimensões humanas (família, lazer, cultura, amigos, etc), reprimidas no seu cotidiano funcional.

Em segundo lugar, e até em decorrência da análise anterior, é a partir dos problemas específicos dessa realidade da região residencial, que as pessoas em geral podem ser mais diretamente instigadas a se mobilizar politicamente visando, de início, valorizar e proteger aquela realidade que ainda lhes permite viver o seu lado humano mais precioso.

2) Mobilização local porém voltada para a luta nas questões macro-estruturais.

Obviamente, está-se longe de defender aqui a idéia de que as transformações estruturais do país venham se dar a partir de reivindicações pontuais e iniciativas locais de segmentos sociais. Aliás, essas iniciativas, quando ocorridas de forma isolada, ou seja, centradas em si mesmas, como costumam acontecer, já demonstraram fartamente que nunca levaram ao avanço qualitativo da mobilização e da consciência política popular. Por isso mesmo, quase sempre, sequer chegaram aos resultados mínimos naquilo mesmo que se propunham a alcançar, desestimulando ainda mais a participação.

Trata-se, portanto, de entender corretamente a referida tática do projeto de abordagem popular. Ela precisa ser construída rigorosamente dentro de um projeto Estratégico, de longo prazo, conforme o proposto acima. Este, partindo dos problemas específicos populares, visa a construção e consolidação progressiva de uma cultura de mobilização e de massa crítica para a intervenção coletiva, cada vez maior, nas questões macro-estruturais que atingem todos os níveis da nossa existência. Para tanto, como já dito, é fundamental uma vanguarda autêntica que atue no sentido de motivar as bases populares a persistir e prosseguir na luta, avançando etapas, sempre dentro do princípio da democracia direta radical.

3) A construção da consciência de classe dos trabalhadores e suas exigências.

Por outro lado, faz-se necessário analisar a tática de abordagem nas bases, adotada concretamente pelas diversas organizações políticas. De um modo geral, ela sim é a mais equivocada possível porque, como já dito, parte da crença de que é possível e necessário alcançar e conduzir as massas simplesmente com a força de verdades pré-concebidas a partir de uma suposta razão científica. É por causa dessa concepção pseudo-vanguardista, que se tem investido em atividades políticas, por exemplo, nos grandes centros comerciais visando atingir as multidões reunidas. Simplesmente se ignora o fato de que ali predomina o modelo burguês determinando e controlando o comportamento das massas a partir das regras frias do individualismo, do consumismo, da mecanização, da mercantilização, da concorrência, etc. Ou seja, partir desse ambiente de massas para tentar implementar o discurso da consciência de classe tem sido sedutor no aspecto do alcance midiático, mas a experiência afirma ser essa uma forma absolutamente inócua na questão da conscientização e mobilização concreta e qualitativa dos trabalhadores.

Ocorre que, paradoxalmente, a identidade que os trabalhadores concentrados nesses centros comerciais mais resistem a ter é justamente a identidade de classe. Pois, isto significaria, de alguma forma, atribuir dignidade às suas obrigações laborais que são normalmente altamente opressoras, escravizantes e desumanas. Dentro desta realidade degradante vivida diariamente pelos trabalhadores em geral, o discurso da vanguarda de esquerda centrado na “valorização da classe” soa como uma ilusão e, por isso, não consegue e nunca consegui atingir a simpatia das massas.

Portanto, a tão importante e imprescindível consciência de classe dos trabalhadores para o processo das transformações estruturais do atual sistema de poder econômico capitalista, na atual realidade opressiva em que os trabalhadores se encontram, só será construída concretamente partindo-se de uma atuação para além do ambiente chamado “profissional”. Em resumo, hoje, com o aperfeiçoamento dos instrumentais burgueses de dominação das massas, impõe-se à militância de esquerda comprometida com a causa popular o desafio da descoberta de novos meios de ação, sem o abandono dos instrumentais já existentes, visando atingir efetiva e eficazmente os indivíduos e as massas trabalhadoras no propósito da mobilização coletiva.

Por isso, fica a proposta para a sua reflexão.

Saudações,


Rio de Janeiro, 09 de maio de 2009.

RINALDO MARTINS DE OLIVEIRA

domingo, 24 de maio de 2009

SONHO QUE SE SONHA SÓ...

Concordo plenamente com Frei Betto quando diz que o chamado “Socialismo Real” (soviético, alemão, tcheco, etc) sucumbiu na última década de 80 porque ainda que saciando razoavelmente as necessidades materiais da população, como a alimentação, a moradia, a saúde, a educação, o emprego, veio, por outro lado, reprimir as suas necessidades subjetivas, traduzidas no direito ao exercício da criatividade, da diversidade de pensamento, da religiosidade, da liberdade de expressão, etc. De modo que, nestes países, socializou-se as riquezas mas privatizou-se os sonhos, sendo estes acessíveis apenas a uma pequena casta de burocratas do Estado. O suficiente para ter levado as massas ao esgotamento psicológico e a renderem-se facilmente às tentações e “maravilhas” do mundo burguês.

O capitalismo, ao contrário, apesar de todas as crises econômicas por ele geradas e atravessadas, tem sido mais sagaz, sustentando-se no decorrer dos últimos dois séculos justamente porque tem garantido a privatização das riquezas através da socialização dos sonhos. Não é difícil perceber que a única coisa que o sistema capitalista não nega à população é o direito de sonhar. Uma pesquisa do IBGE em 1994 revelou que 85% da população brasileira possuía TV mas apenas 60% possuía geladeira, significando que o povo se “alimenta” mais de imagens do que de comida, mesmo porque comida tem que se pagar caro para tê-la, já para o acesso às imagens basta ligar o botão.

Não é que o sonho não seja necessário e importante. Tanto é que todo um sistema sócio, econômico e político ruiu por causa justamente da negação à coletividade do direito de dar vazão à sua subjetividade. Mas a questão é o que e como sonhar. O capitalismo induz o povo a sonhar permanentemente com uma “realidade” que não existe, e o faz com tanto realismo que acaba convencendo. O filme “Matrix I” expressa inteligentemente esta questão (fiz um artigo a respeito).

Em especial, a ideologia burguesa pretende intensificar ao máximo o sonho do consumo como condição da realização da felicidade humana, de modo que é necessário persuadir a todos que quanto mais se consome e se tem, mais se é feliz (vide a cara de satisfação das modelos nas propagandas comerciais) . Não é por outro motivo que se verifica o espantoso número de frequentadores dos shoppings nos fins-de-semana enquanto os parques florestais estão cada vez menos visitados.

A ilusão do consumo como sinônimo de felicidade se faz a partir da massificação contínua e sistemática de certos valores, nos mais diversos ambientes sociais, que colocam o comportamento individualista como virtude máxima. O ideal da vida burguesa é a busca da auto-suficiência onde o outro não seja necessário senão como objeto de uso e exploração, tornando-se descartável como qualquer outro produto. O objetivo político disto é bem claro: enfraquecer a relação humana e, obviamente, fortalecer a exploração dos dominantes sobre os indivíduos desumanizados, separados e alienados.

O justo e necessário sonho, portanto, é aquele que se sonha coletivamente como Raul dizia. O sonhar coletivo é o oposto do sonho massificado e atomizado que hoje se impõe. Este sempre nos leva à desilusão, à desesperança e ao desespero. Aquele é o que nos permite a conquista de uma vida digna, justa, bela e solidária (e não solitária, como a que se vive hoje) para todos. Qual sonho escolher?

Rinaldo Martins de Oliveira
2004

sexta-feira, 22 de maio de 2009

TRABALHADOR: O ESCRAVO REMUNERADO.

A diferença no Brasil dos dias atuais para a época das senzalas, não é que, hoje, já não haja mais escravos. Pelo contrário: é que a escravidão agora atinge o conjunto da nossa sociedade, “indiscriminadamente”.

Obviamente, aqui, não estamos comparando a realidade social entre negros e brancos que continua refletindo fortemente o processo histórico de segregação dos primeiros. Nem tão pouco ignorando a existência dos segmentos sócio-econômicos tão díspares que nos dá o triste título do país mais desigual do planeta.

Estamos refletindo a respeito da lógica principal que sustentou no nosso país o regime escravista e que, na verdade, não mudou: a lógica do lucro que submete o indivíduo e as massas ao máximo esforço físico e mental visando a máxima produção.

Isto é o que chamam hoje de trabalho. A única diferença da escravidão clássica é que trabalho faz-se uma atividade remunerada (veja que a expressão “trabalho escravo” é utilizada justamente para representar uma relação trabalhista entre patrão e empregado que seria normal se não fosse não-remunerada).

Se formos pôr no papel a quantidade de tempo total gasto, em média, por um trabalhador brasileiro, com expediente de 44 horas semanais, incluindo-se todas as atividades diretamente relacionadas ao seu trabalho, poderemos concluir que este simplesmente dedica, no mínimo, METADE do seu dia para a produção. Senão vejamos:

9 horas de trabalho + 2 horas de condução + 1 hora de almoço =
TOTAL: 12 HORAS.

Se formos incluir a preparação para o trabalho que seria lavar e passar as próprias roupas, os cuidados de higiene e estética pessoal, bem como o café da manhã, poderíamos acrescentar, no mínimo, mais 1 hora. Conclui-se que, por baixo, mais da metade do dia do indivíduo é voltada DIRETAMENTE para o exercício do trabalho.

Considerando que a média do sono é de 8 horas, somando-se com as 13 horas voltadas ao trabalho, então sobrarão três horas no dia para que o indivíduo “trabalhador” possa fazer tudo o mais necessário: jantar, higiene pessoal, arrumar a casa, compras, cuidar da família, pagar contas, resolver problemas etc. E estamos aqui só discriminando as tarefas e as obrigações rotineiras. Mas há ainda o lazer, o amor, o ócio, a cultura etc.

É claro que o ser humano não é uma máquina que pode ser ativada sem parar. Estas três horas desse dia chamado “útil” que teoricamente restam ao trabalhador para fazer TUDO o mais além de trabalhar, obviamente serão desviados para a fuga e o alívio imediato. Na prática, esse TUDO o mais a fazer será mesmo jogado para os fins-de-semana. Conclui-se, portanto, que, no mínimo, metade deste “tempo livre” será para resolver problemas acumulados durante a semana, mês e ano. Na outra metade, então, finalmente o trabalhador poderá dar vazão às suas dimensões afetivas, estéticas, intelectuais, societárias, etc.

Mas perguntamos: realmente o conseguirá? Evidentemente que não! Como poderia este trabalhador, num passe de mágica, destituir-se de todo peso que carrega nos 90% de tempo da sua vida “útil” cotidiana, para transformar-se em um ser humano livre e integral, no 10% de tempo “livre” que lhe resta na vida?

A verdade é que a couraça de aço, no seu caso, já está estabelecida, impedindo qualquer tentativa de libertação, pois não há libertação temporária, à prestação. O que normalmente o trabalhador faz com o seu tempo livre é afundar-se ainda mais, seguindo normalmente um estilo de vida dentro da mesma lógica constante de desumanização a ele imposta no seu dia-a-dia funcional.

É verdade que, para quem pode obter bens de consumo, hoje são oferecidos diversos recursos para o seu “tempo livre”, dando a falsa impressão de liberdade e de felicidade. Mas estes poucos mais privilegiados economicamente são ainda mais escravos, porque absolutamente convencidos que a sua vida é boa e livre. Por isso, aliás, são capazes de tudo para se firmarem em seu falso mundo de felicidade.

(Inclusive, a violência social nasce justamente do espírito egoísta, individualista, consumista e recalcado desse segmento. As massas pobres, na verdade, reproduzem, do seu jeito, os valores dos mais abastados, tido como ideais).

Concluindo: a luta pela redução da jornada de trabalho só se justifica se for para ajudar a transformar o trabalhador, que na verdade continua sendo um escravo do sistema, em verdadeiro ser humano livre. Ou seja, inverter radicalmente a estrutura de poder no país e no mundo, colocando o ser humano e seu bem-estar, e não a produção e o lucro (o bem estar do patrão), como centro.

Isto, sem ilusão, só será possível instaurando-se uma outra sociedade: uma sociedade autenticamente socialista.

Rinaldo Martins de Oliveira

HÁ REALMENTE CRISE DAS ESQUERDAS BRASILEIRAS ?

As análises que tenho lido e ouvido entre os mais diversos pensadores e intelectuais de esquerda, marxistas ou não, sobre as causas da crise política que as esquerdas brasileiras vêm atravessando nestes últimos tempos, giram sempre em torno da tese da “diluição do debate ideológico” no interior das suas organizações políticas. Isto resultando, de um lado, na “traição” e “cooptação” de suas direções (bem como governantes e parlamentares advindos deste meio), e de outro lado, no “abandono” da concepção socialista do mundo e dos instrumentais marxistas de análise da realidade, com a conseqüente “rendição” e “adaptação” à ideologia do neoliberalismo capitalista, em doses disfarçadas ou explicitamente.

Discordo desta tese. Não que não tenha havido no meio das esquerdas, nos últimos anos, em resumo, a substituição radical do programático pelo pragmático, do ideológico pelo fisiológico. Isto é público e notório. As políticas hoje adotadas pelas ditas “esquerdas” são todas rigorosamente centradas nos oportunismos das conjunturas eleitorais, o que ensejou a rápida degeneração política e ética de amplos setores e lideranças que um dia defenderam um modo novo e popular de fazer política no país.

Tenho, contudo, dois entendimentos que explicam minha discordância. Primeiro em relação às “esquerdas” no poder. Avalio que o giro de 180 graus dado por elas, em fartos e vergonhosos exemplos diariamente noticiados na mídia, representa “apenas” o desvelamento das suas concepções elitistas de poder, guardadas cuidadosa e pacientemente por décadas na espera das condições conjunturais favoráveis para que pudessem vir à tona.

Objetivamente, estas condições foram oferecidas a partir de 1989, com a vertiginosa ascensão do “lulismo” na mídia burguesa e do “petismo” no cenário político-institucional nacional, ensejando, desde então, um rápido aumento do número de parlamentares e governantes das “esquerdas”, culminando, alguns anos depois, na eleição e reeleição de Lula à Presidência da República.

Entendo que, nestes tempos atuais, sobretudo com a derrocada do socialismo real e a imposição do “pensamento único”, projetos de poder, já há muito tempo em ebulição, assumiram a cena, de modo que máscaras já não são mais necessárias. Ou seja, as faces que vemos hoje são as verdadeiras faces que estiveram travestidas até então.

Frei Betto, no seu livro “A mosca azul”, que faz uma análise do poder a partir da sua experiência no primeiro governo Lula, afirma que as pessoas não mudam: apenas revelam-se quando estão no poder. De certa forma tem razão. O triste e trágico desta degeneração, entretanto, não são as políticas em si mesmas implementadas por tais novos representantes da burguesia. Estas passarão sem deixar lembranças. O que perdurará, por muito tempo, na mente da atual e, sobretudo, das futuras gerações será a constatação frustrada de que a “história de luta” atribuída às principais figuras que hoje estão no poder não passou de um mero engodo histórico, de uma mentira.

Na minha avaliação, há também um segundo equívoco nas interpretações dos intelectuais ao se tentar explicar a contradição das atuais “esquerdas” no poder pela ótica da flexibilização ideológica sofrida por elas. Entendo que esta argumentação não se sustenta ao se constatar que as próprias esquerdas oposicionistas da atualidade, sem exceção, que se dizem autênticas em suas concepções ideológicas e imunizadas ao “canto da sereia” da burguesia, têm praticado, nos e com os seus meios disponíveis, políticas oportunistas tão iguais e gritantes quanto as cometidas pelas “esquerdas” no poder.

Nisto quero afirmar que a farsa política que hoje predomina no país (e no mundo tomado pelo capitalismo) é generalizada, ou seja, não só gerada pelos que estão no poder das instituições e da burocracia estatal mas também pelas esquerdas oposicionistas que almejam alcançá-lo utilizando-se da mesmíssima lógica pragmática, eleitoreira, cupulista e autoritária de fazer política, ainda que recorrendo a um discurso revestido de “contestação” e de “indignação”, em defesa do “resgate dos fundamentos éticos e ideológicos da esquerda marxista”, etc.

(É bom lembrar que foi justamente esse o mesmo discurso utilizado no passado pelos que hoje estão dominando, contra os desgastados partidos e entidades sindicais tradicionais de “esquerda” no país).

A triste e mais grave conclusão que faço, enfim, em absoluto desacordo com os intelectuais que têm analisado a crise das esquerdas no país, é que, para mim, não há a tão propalada crise das esquerdas. Isto porque simplesmente hoje não há esquerda no país.

O que se verifica, na realidade atual, são diversos segmentos políticos (pessoas, grupos, organismos, entidades, partidos, etc), aliados ou contrários ao governo, sem nenhum projeto, sequer mínimo, voltado para a prática política transformadora no meio popular. Pelo contrário, todos estão rigorosamente atolados no pragmatismo de um jogo político centrado na auto-sobrevivência e na auto-suficiência enquanto agentes políticos institucionalizados.

Para a esquerda governista (a então chamada esquerda light) a velha estratégia da politização e organização das massas, em torno das suas lutas concretas, foi totalmente abolida. Mais ainda: foi também renegada como um anti-serviço ao país e, até mesmo, como um golpismo na medida que configura agora uma ameaça à preciosa estabilidade política do atual governo, auto-intitulado “popular”, ao qual entende-se que todos os movimentos devam estar submetidos.

Para os setores da esquerda opositora - erroneamente intitulada “radical” - o projeto da politização e da ética continua apenas como um discurso teórico vazio de valor. De certo, aplaca frutuosos efeitos midiáticos sobre segmentos mais “progressistas” da classe média urbana no país, uma vez que é a única que polariza com o governo em torno de assuntos ideológicos. Não obstante, isto não reflete numa mínima prática concreta no meio popular.

Neste contexto, o que se observa é que as massas oprimidas e as classes trabalhadoras exploradas estão, mais do que nunca, absolutamente órfãos de uma vanguarda política verdadeira e séria no país, de uma esquerda realmente autêntica que deseje assumir para si o papel histórico de levantar a auto-estima do povo na direção do resgate da sua dignidade humana e enquanto classe trabalhadora.

Não obstante creio que esta situação de crise, não tanto política ou ideológica, mas, sobretudo, “crise de referências”, em que as massas estão vivendo, guarda algo de profundamente positivo: a oportunidade, historicamente inédita, da consolidação, no interior da população, de condições subjetivas - vendo ela afastados e desacreditados todos estes que um dia disseram ser seus líderes e representantes na luta – que lha dêem instrumentais próprios capazes de criar novas formas e frentes de atuação política coletiva e novas lideranças que, a médio e longo prazo, poderão assumir a vanguarda desse processo radical por transformações estruturais no país.

É bom que os atuais setores de “esquerda”, governista ou oposicionista, se atentem, enquanto é tempo, para o fato de que toda essa movimentação revolucionária popular poderá vir a ocorrer, não só em substituição a eles como até mesmo contra eles. Pois, do jeito que estão, certamente serão considerados, pelo tribunal do povo, como traidores e inimigos da classe trabalhadora.

RINALDO MARTINS DE OLIVEIRA – 3/04/07

ESQUERDAS: VANGUARDA REVOLUCIONÁRIA OU NOVOS REPRESENTANTES DAS ELITES BURGUESAS ?

Nos meus 25 anos de modesta mas intensa atuação política no movimento estudantil, eclesial, partidário e sindical e de reflexão constante, individual e no meio familiar, sobretudo a respeito de como construir concretamente uma sociedade mais justa e fraterna (reflexão esta que sempre se centrou na rica perspectiva evangélica e, a partir dela, tornou-se profundamente aberta e atenta a outros instrumentais de análise do homem e das estruturas sociais, como o marxismo) pude adquirir apenas uma certeza: a de que sem uma vanguarda intelectual de esquerda realmente comprometida com um profundo e abrangente trabalho de conscientização, politização e organização das e, sobretudo, nas massas populares, nenhuma mudança substancial da realidade social, econômica, cultural e política no país ocorrerá efetivamente.

O que entendo como “vanguarda intelectual de esquerda” ? Esta, no meu entendimento, é bem diferente do conceito de “vanguarda” definido por Lênin cujo propósito foi o de comandar o partido único revolucionário comunista com a pretensão de traçar a linha ideológico-estratégica a que todos os militantes partidários e indivíduos aliados em geral deveriam se submeter para garantir o sucesso da revolução e o seu desdobramento almejado: a sociedade socialista.

Se utilizo-me, entretanto, desse termo leninista, faço-o de propósito por mais se aproximar da idéia que concebo do papel político-estratégico desenvolvido por esses indivíduos, grupos e/ou movimentos que vislumbro como “lideranças” (termo menos apropriado) de um longo processo de transformações protagonizadas pelas massas populares. Faço-o também justamente com a intenção de desapropriar tal palavra do domínio de seus conceitos originários, rejeitando todos os seus aspectos autoritários (aqueles construídos a partir de uma forte influência do autoritarismo iluminista da Revolução Francesa) e enaltecendo os seus aspectos altruístas bem ao “estilo” dos grandes profetas bíblicos nos quais especialmente Marx buscou inspiração, sobretudo, para a sua teoria filosófica.

Para mim, trata-se de definir “vanguarda” como um movimento de pessoas preocupadas em utilizar-se de todo o seu “potencial intelectual” (conhecimento histórico, político, filosófico e pedagógico) não para “conduzir” as massas, ou “dar a linha política”. Também não para conscientizar, politizar ou organizar as massas no sentido impositivo que se aplica na grande maioria das vezes. Se, porém, não coloco aspas nestas três palavras políticas (conscientizar, politizar e organizar) é porque não só confirmo a sua legitimidade como elevo-as ao patamar mais alto do trabalho estratégico da vanguarda, devendo ser, contudo, uma atividade desenvolvida necessariamente no interior das massas, a partir da sua própria realidade, onde não se sustenta a formulação autoritária de vanguarda.

O que a Vanguarda autêntica pode oferecer na sua atuação junto às massas? “Apenas” (não entendendo aqui um reducionismo da sua importância essencial), e rigorosamente apenas, os instrumentais capazes de motivá-las e ajudá-las a formularem, por si mesmas, suas próprias descobertas, armas e caminhos a seguir, tornando-se realmente agentes protagonistas da cena política no país e, quiçá, no mundo, como conclamou os jovens Marx e Engels em seu famoso Manifesto Comunista.

Atente-se, também, para o detalhe da minha insistência em repetir esta palavra “massas”. Transformo-a aqui, de seu comum significado pejorativo, ou seja, de algo que sempre lembra a massa fria e obediente do bolo que cresce e toma forma ao ser manipulada e cozinhada, em um novo significado que a faz adquirir vida, complexidade e autonomia. É justamente nessa massa ou nessas massas populares de indivíduos massacrados, explorados e quase sempre isolados e desorganizados que entendo que a verdadeira Vanguarda deve atuar diretamente, ou seja, para muito além da atuação intermediada pelos ditos movimentos sociais organizados. Pois há um erro grave de avaliação em acreditar que todo o movimento organizado social esteja necessária e privilegiadamente refletindo a ponta de lança dos apelos populares o que, hoje mais do que nunca, está muito longe de ser verdade na maioria esmagadora dos casos.

Entendo que a profunda crise em que estamos sofrendo no país não é aquela crise ética noticiada na mídia provocada por maus políticos, governantes, magistrados, ou seja, as máfias organizadas corruptas e oportunistas. Também não é a crise econômica. A verdadeira crise que realmente abala o povo brasileiro é outra, muito diferente, mais complexa, já crônica, e está fora dos jornais e noticiários: a crise de referências.

As massas sentem que estão sós, mais do que nunca abandonadas pelas pessoas, grupos, partidos, movimentos, instituições, ou qualquer outro ente que lhes pudessem motivar a galgar um pouco de auto-estima, de dignidade humana, de razão para existir, resistir e lutar. Está aí a verdadeira tragédia nacional.

De fato, até há muitas pessoas e organismos que estão no país desenvolvendo suas atividades sociais e políticas, dispondo, muitas vezes, de grandes recursos humanos, materiais e estruturais. Não obstante, todos esses, quase sem exceção, demonstram-se em suas atividades estar preferindo acomodar-se ao status quo, adotando justamente a mesma prática elitista-populista-corporativista que muitos dos seus adeptos denunciaram no período dos anos de chumbo no país.

Está realmente muito difícil encontrar algum setor organizado realizando no país um trabalho popular sério e consistente, ou seja, um projeto de verdadeira vanguarda. O que estamos vendo nos últimos vinte anos é a reprodução exata da velha prática de fazer das massas as mesmas “massas de manobras” de sempre, seja utilizando-as com o mesmo viés estritamente eleitoreiro, seja como objeto de apelo de interesses corporativistas e isolacionistas de pequenos agrupamentos ou instituições. Por isso da necessidade da Vanguarda atuar hoje diretamente com as massas, sem muitos intermediários.

Em resumo: ou ocorre, enquanto é tempo, uma radical guinada de rumo no caminho traçado, nos últimos anos, pelos setores organizados neste país historicamente identificados com o discurso de esquerda e da transformação, redefinindo-se profundamente o seu papel e lugar no processo da revolução popular,ou então podemos afirmar que, aqui e agora, estamos presenciando as sua principais figuras, de pouco a pouco, tomando as rédeas do poder para continuar impondo os interesses dos poderosos no decorrer do próximo século XXI. A vanguarda deve servir para ajudar a impulsionar o processo revolucionária, não o contrário.

Rinaldo Martins de Oliveira
Fevereiro de 2007

A CIDADE COMO LUGAR DA CONSTRUÇÃO DA FELICIDADE (na perspectiva de José Comblin)

As reflexões filosóficas feitas sobre a vida na cidade, em sua esmagadora maioria, têm traçado, cada vez mais, uma visão essencialmente negativa desta, identificando, inclusive, os principais problemas que hoje ameaçam o futuro da humanidade (sobretudo na questão do meio ambiente) como inerentes à lógica intrínseca à organização dos homens nos aglomerados urbanos.

Em decorrência dessa conclusão, estabelece-se, quase que como um padrão, o retorno ao campo como a única alternativa para a superação da crise geral provocada pelas cidades. Entende-se que é o campo, como sempre foi no decorrer de todo a história da humanidade, o lugar natural da vivência dos homens e que os grandes aglomerados urbanos só surgiram, no último século XX, por uma questão de imposição do sistema capitalista hegemônico visando a construção e a monopolização do mercado de bens e consumo a partir das massas reunidas.

Na direção contrária a essa análise crítica das cidades está a avaliação do escritor e teólogo da libertação José Comblin, que há 40 anos reflete a vida na cidade com um olhar extremamente positivo, dentro da perspectiva teológica e antropológica que lhe é peculiar. O seu entendimento é que o fenômeno atual da globalização dos aglomerados urbanos faz-se um dos mais fortes “sinais dos tempos” contemporâneos, inclusive resultado da influência histórica libertária do Espírito Santo junto à humanidade. Na sua perspectiva, a cidade, com todos os problemas que nela existem, ainda sim é hoje o lugar privilegiado que os homens dispõem para a construção da sua liberdade integral que é viver a própria liberdade do Reino de Deus.

Em seu último livro sobre o assunto, chamado “Viver na Cidade” (Paulus, 1996) Comblin faz um rico contraponto entre o campo e a cidade observando, nesta última, diversas situações e virtudes que vêm proporcionando aos homens, em vários sentidos, a sua emancipação dos limites e obstáculos culturais, políticos, religiosos, econômicos, etc, enfim, existenciais, da vida tradicional (secular e milenar) no campo. Esse processo de emancipação, apesar de estar ainda na sua fase embrionária, e sofrendo todas as contradições e desvios provocados pelas estruturas de opressão e dominação instaladas, sobretudo, pelo sistema de poder burguês, para o autor, é a dinâmica através do qual todos os homens são chamados a dedicar suas vidas a fim de alcançar o que profundamente procuram: a felicidade.

Enfim, com as poucas palavras aqui expressas em referência à complexidade do pensamento do autor sobre o assunto abordado, já se pode ter a idéia de que José Comblin objetiva - o que é a sua maior especialidade – pôr em suspeita mais esse conceito padrão que tende relacionar a cidade ao caos nos seus diversos aspectos e o campo ou o meio rural como o lugar da felicidade humana, da realização existencial, dos projetos de vida ainda possíveis.

Sabemos que a felicidade está muito além do estilo e forma de vida que se leva em um determinado lugar ou situação territorial. Não está no campo ou na cidade, mas fundamentalmente no interior de cada um. Contudo, a felicidade também não é algo dado mas construído. Para Comblin a cidade urbana oferece os maiores instrumentais para que essa construção da felicidade humana individual e coletiva possa se desenvolver de forma mais livre, ampla e profunda.

Rio de Janeiro, 04 de maio de 2009.

RINALDO MARTINS DE OLIVEIRA

quinta-feira, 21 de maio de 2009

A PESTE EMOCIONAL

Considero Wilhelm Reich - o pai da chamada terapia reichiana - mais do que um grande psiquiatra: talvez o pensador que mais pesquisou a alma humana no século XX.

Com o seu conceito da “peste emocional” desenvolvido no livro Assassinato de Cristo, escrito em 1947, pela primeira vez, Reich propôs detectar, através da análise do comportamento humano agressivo frente à “energia vital” (o que ele denominou no livro como “Vida Viva”, configurada na pessoa de Cristo), os elementos primários geradores do mal da humanidade e instauradores dos megasistemas de poder pelos quais este mal humano viria a se propagar nas sociedades.

Reich defende a tese de que os seres humanos sofrem, desde os primórdios da sua existência, uma rigidez muscular crônica herdada e intensificada de geração em geração, resultando na grave obstrução da circulação no corpo de energias biófilas (relativas ao impulso à vida, na expressão do psico-sociólogo Eric Fromm).

A “peste emocional” consiste numa espécie de vírus que, impertinente e impiedoso, atinge os organismos vulneráveis tornando-os não só ainda mais incapazes de sentir e usufruir a energia vital (qual Reich depois veio denominar “orgone”), como também responsáveis por engendrar no subconsciente e inconsciente humano percepções, sentimentos e valores necrófilos (relativos ao impulso à morte), atingindo, por fim, o âmago do caráter.

A dimensão revolucionária dessa tese de Reich (resultando-lhe em cruéis perseguições pelos fascistas, comunistas e capitalistas da época) está na afirmação de que os males encontrados em grande escala nas sociedades não são frutos dos sistemas de poder mas, antes, conseqüência do próprio caráter neurótico das massas humanas.

Para Reich, o escravismo, o totalitarismo, o fascismo, o nazismo, o capitalismo e todos os outros “ismos” que no decorrer da história vêm tirando a vida de milhões e milhões, no fundo, paradoxalmente, não passam de aberrações criadas pelas próprias massas humanas. De acordo com sua tese, Jesus não foi morto pelo poder religioso (farisaísmo) e político (cesarismo) da sua época. Seus detentores foram apenas executores da vontade deliberada das massas humanas que, no decorrer dos séculos, vêm criando e recriando carrascos e monstros como Hitler, Nero, Gengis Kan, Bush, preparados para dizimarem quantos “Cristos” forem necessários a fim de que se preserve intacto o culto coletivo à morte e à barbárie.

O caráter dos homens é que, portanto, para Wilhelm Reich, deve ser radicalmente transformado, sem o que a humanidade continuará padecendo na expectativa vã de que um líder ou um “ismo” qualquer venha lhe salvar e lhe trazer novamente à Vida.

Os homens de boa vontade – para Reich estes existem apesar de também serem afetados pela peste emocional – serão os responsáveis pelos primeiros passos fundamentais rumo à ruptura deste mal enraizado e do resgate da energia vital que, apesar de reprimida, continua guardada no interior dos homens (sobretudo no das crianças) e no cosmos, na espera de ser ativada e potencializada por cada um, livremente, como Cristo o fez plenamente.

Na sua visão, para podermos entender a sociedade e seus mecanismos estruturais de poder, atuar no sentido da derrubada do atual sistema dominante e implementar um novo sistema mais humano, será necessário aos homens de boa vontade debruçarem-se com firmeza no mundo do interior bio-psíquico, ou seja, na análise do seu Caráter. Deverão descobrir através de quais mecanismos sutis os nossos organismos se mantêm incapazes de se abrir à circulação das energias vitais, criando, com isso, tensões e neuroses que implodem no corpo em doenças e explodem na sociedade em violência generalizada e institucionalizada.

Para Reich, só com este pleno conhecimento do caráter individual e coletivo e com o adequado tratamento da desobstrução energética do corpo, seremos capazes de seguir em direção à verdadeira revolução integral da humanidade. Esta ocorrerá em profunda sintonia com os impulsos à Vida inerentes no organismo humano e no cosmos.

Wilhelm Reich, ainda hoje muito pouco (re)conhecido, foi esse grande pensador e idealista, tentando, ao final da sua vida, capturar a energia vital “orgone”, através da invenção de uma máquina, o que lhe resultou em cassação do seu registro de médico e em prisão. No cárcere, mal-tratado e doente, meses depois veio a falecer. Foi ele mesmo, no final, mais uma das vítimas da fúria da peste emocional contra a qual lutou incansavelmente.


Rinaldo Martins de Oliveira
ABRIL 2006

UM TESTEMUNHO CRÍTICO DO SINDICALISMO ATUAL

Nos meus 15 anos de militância sindical pude enxergar perfeitamente a “engrenagem” que já há décadas tem movido os sindicatos do país.

“Engrenagem” é a palavra exata porque concluo que a força motriz que vem determinando a dinâmica sindical, ao contrário do que muitos de nós ainda ingenuamente imaginamos, deixou de ter origem, há muito, no embate dialético das idéias políticas, sejam individuais ou dos grupos ideológicos organizados. Hoje, mais do nunca, é a mecânica fria do pragmatismo, estruturada internamente a partir da consolidação da concepção burguesa do poder (inoculada nas “bases” e nas “cúpulas”), que se faz a responsável maior por impor “caminhos” e “regras” a todo o movimento sindical.

Por conta desta força motriz do movimento sindical ter se deslocado quase que totalmente do campo das idéias para o campo da estrutura, dos modelos políticos prontos, da burocracia, os sindicatos hoje vivem o fenômeno da “autonomização”, ou seja, são capazes de sobreviverem e andarem sozinhos, sem a necessidade do mínimo envolvimento dos trabalhadores no dia-a-dia sindical.

Exemplo? A diretoria utiliza-se da máquina como bem entende, sem nunca consultar as bases; as assembléias gerais deliberam, em nome de toda categoria, com qualquer número de presentes; os Congressos fazem-se cada vez mais fechados à efetiva participação direta dos trabalhadores, com o aumento contínuo da proporção delegado/base; a comunicação sempre enaltece aspectos positivos de uma atividade “mobilizadora” que, na verdade, efetivamente foi praticamente inexistente ou mesmo totalmente fracassada, etc.

Isto se explica pela atual lógica da relação de poder predominante e atuante no interior do movimento sindical atual. Na verdade, hoje, dirigentes e dirigidos são e querem ser regidos concretamente pelas mesmas regras “democráticas” da sociedade burguesa, dando toda a ênfase ao mesmo modelo de organização política que, em última análise, visa a concentração do poder deliberativo e executivo dos recursos coletivos nas mãos de alguns que, para consegui-lo e mantê-lo, sempre precisam servir politicamente aos interesses das elites.

De um lado, os dirigidos se livram dos incômodos das suas efetivas responsabilidades. De outro lado, os dirigentes ficam livres para gerir a máquina a seu bel prazer transmitindo, através dela, a ilusão de falsos avanços e conquistas. A máquina sindical, que seria um instrumento complementar da luta coletiva dos trabalhadores, então ganha vida própria de modo a substituir os pés, mãos e mente dos trabalhadores. Pacto firmado: estes (não à toa chamados de “base”) passam a servir como personagens coadjuvantes ou mesmo figurantes de uma encenação pré-concebida e protagonizadas pelos seus representantes (a “cúpula"). Conjunção perfeita de uma grande hipocrisia e de uma farsa auto-destrutiva.

Portanto, o tão propagado avanço da “circulação democrática de idéias” no interior do movimento sindical, que as atuais elites burocráticas sindicais do país têm disseminado como prova do suposto engrandecimento e amadurecimento da consciência coletiva dos trabalhadores e como elemento legitimador da implementação progressiva do seu chamado “novo sindicalismo”, não passa de um jogo de cena visando apenas maquiar e legitimar o processo autoritário, totalitário, alienado e alienante encontrado cada vez mais nas relações de poder entre os trabalhadores no atual meio sindical.

A prova cabal dessa dura verdade é que toda denúncia concreta e pontual dessa farsa pseudo-democrática, feita por pequenos setores oposicionistas em sindicatos de base, é sempre alijada e estigmatizada pelas cúpulas como sendo um “assunto vazio” ou movido por “sectarismo”.

O importante, hoje, às castas sindicais é dar curso à instauração e consolidação de um novo modelo sindical onde o embate de idéias e a ação direta das massas trabalhadoras seja algo definitivamente do passado, obsoleto, valendo agora a eficácia dos mecanismos e estruturas do poder concentrado, onde cada parte envolvida - “bases” e “cúpula” - tenha o seu papel e lugar definidos, para que os objetivos “gerais” possam ser alcançados.


RINALDO MARTINS DE OLIVEIRA– 1 DE AGOSTO DE 2005.

UMA PEQUENA EXPERIÊNCIA REVOLUCIONÁRIA

No início da década de 90, umas dez pessoas formávamos o chamado “núcleo do PT” da Água Santa, bairro residencial de classe média baixa e popular da zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Era o tempo em que muitos ainda acreditavam que o PT, apesar de todas as limitações, problemas e contradições internas, fazia-se o pólo político dos movimentos sociais e dos indivíduos interessados em contribuir para as transformações macro-estruturais no país.

Havia naquela região - que engloba, além do bairro referido, também os bairros de Quintino, Piedade, Engenho de Dentro e grande Méier - 5 núcleos do PT que, somados, reuniam cerca de 100 militantes ativos e mais centenas de participantes eventuais. Ocasionalmente esses núcleos se encontravam em assembléias distritais normalmente para a escolha de delegados aos fóruns do partido. Vez ou outra também promovia-se em conjunto algum evento público. No mais, cada núcleo se contentava em realizar, do seu jeito, atividades políticas e culturais que envolvessem os seus próprios integrantes e convidados.

Nós, do núcleo Água Santa, o mais novo e menor dentre os que já existiam naquela região, entendíamos que faltava, por parte desses e outros núcleos, uma prática política mais consistente e direta junto aos moradores dos bairros. A realidade era que, salvo momentos excepcionais e ainda sim vinculados a uma agenda eleitoral (campanha de candidatos majoritários ou proporcionais), os núcleos se mantinham internalizados, voltados para si mesmos dentro da lógica da “auto-suficiência”, como se participar da estrutura e da dinâmica interna do partido (diretório, mandatos, reuniões, plenárias, assembléias distritais, congressos, etc) fosse já fazer política na sociedade.

Esta lógica “internista” era objeto da principal crítica nossa ao PT e à prática de seus núcleos. A atuação também no ambiente eclesial de alguns de nós integrantes do núcleo, proporcionava o aprofundamento da discussão do grave erro e das conseqüências nefastas desse modelo internista de organização. Pois a mesma crítica fazia-se às chamadas “paróquias”, estrutura de organização oficial da Igreja. Entendia-se que essas, também centradas em si mesmas, tornavam-se, contraditoriamente, o obstáculo maior ao exercício do papel missionário central da Igreja que seria o anúncio do Evangelho, reduzindo a Igreja a uma mera prestadora de serviços religiosos.

Por isso, os integrantes do núcleo petista de Água Santa entendíamos que a concepção de atuação partidária da maioria dos núcleos do PT levava-os a deturpações e desvios dos objetivos estratégicos do programa partidário centrado na questão do estímulo à participação direta da população no dia-a-dia da política, a partir da sua própria realidade local.

Desse modo é que surgiu, entre nós, a proposta da realização de uma atividade de ação direta junto aos moradores do bairro. Tratava-se de tentar concretamente motivar a população local a se mobilizar visando melhorias na própria comunidade. A tática seria trabalhar, em primeiro lugar, um pequeno questionário onde perguntávamos aos moradores quais eram os principais problemas do bairro e quais seriam as supostas soluções para resolvê-los. Após esta etapa, então, partiríamos para um segundo momento convocando os próprios moradores para um ato público reivindicando aos órgãos competentes providências quanto à solução do maior problema identificado na pesquisa. Chamaríamos, para esse evento, políticos da oposição e os aliados dos governos municipal e estadual visando comprometê-los. Tal ação seria uma dentre muitas outras que o núcleo estaria desenvolvendo, inclusive com o intuito de ampliar o leque de lideranças e das organizações locais para além dos limites do nosso próprio núcleo partidário.

Aqui faço um rápido corte para esclarecer - o que, de propósito, não fiz no início - que a minha intenção neste texto é de fazer uma breve reflexão desse momento rico (ainda que bem curto) que o nosso núcleo teve o privilégio de viver quando da execução da primeira etapa da nossa proposta, conforme acima. Posso afirmar, quase vinte anos depois, que foi aquele um momento que nos deixou grandes marcas, não tanto pelos resultados concretos almejados - que acabamos não alcançando em sua plenitude (como será melhor exposto abaixo) - mas pela própria experiência de uma ação no meio popular que nos confirmou e aprofundou a convicção filosófica e política de que era e continua sendo aquele modelo tático-estratégico – a ação direta voltada para a mobilização popular em torno de soluções de problemas concretos - o único caminho viável para que se possa construir o movimento político de massas em luta pela sua libertação integral, inclusive do jugo do capital.

Naquele início dos anos 90 quando constituímos o núcleo petista de Água Santa, a conjuntura político-partidária brasileira, afetada pelas derrocadas do socialismo real nos países europeus e União Soviética, já apontava visivelmente o declínio e descaracterização do movimento partidário de esquerda, especialmente do PT, sendo o maior partido desta corrente ideológica e que englobava os diversos setores políticos progressistas da sociedade.

Apesar da existência dos núcleos e de alguma autonomia e poder que eles possuíam dentro do partido, este, a partir das suas cúpulas, já se organizava todo voltado para a questão eleitoral. Isto, na realidade, já era mais do que uma tática adotada pelos seus dirigentes, apesar das minimizações nos seus discursos. Tratava-se de um novo enfoque estratégico que vinha sendo de pouco a pouco digerido e consolidado, em substituição total ao programa originário do partido mais centrado na participação direta popular.

O contexto histórico-político naquela época ajudou enormemente a legitimar que tal guinada de rumo pudesse ocorrer sem muita reação das bases partidárias. Em primeiro lugar, era a primeira vez, nos últimos trinta anos, que experimentávamos as tão esperadas eleições diretas nacionais. E para fortalecer muito mais ainda o investimento total na política eleitoral, submetendo tudo e todos a ela, ocorrera em 1989 o “quase lá” da vitória de Lula e do PT. Mediante essa realidade, praticamente era impossível que o partido não viesse a ser seduzido pelo “canto da sereia” e mergulhar nas águas profundas, pesadas e lamacentas da política institucional.

Este pequeno corte histórico acabou por situar sobre qual contexto político-partidário o nosso núcleo petista de Água Santa se aventurava realizar uma ação política cuja direção acabava por ser totalmente oposta à direção já assumida pelo partido. Contudo, justamente por causa da expectativa que todos os militantes, com menos ou mais intensidade e realismo, tínhamos em torno da candidatura Lula, não nos era permitido, ainda, vislumbrar com clareza e precisão qual seria os rumos que o partido iria tomar numa futura vitória eleitoral.

Assim, acreditávamos que, apesar da maioria dos núcleos e da linha partidária não ser (e nunca ter sido, na prática) a de voltar-se para a atuação efetivamente popular, ainda sim nossa iniciativa poderia ser um exemplo e até um modelo de ação direta a ser adotado futuramente, numa nova conjuntura política, com Lula e o PT no poder ou não. Contudo, os rumos tomados pelo partido (política de alianças perigosas, reestruturações internas autoritárias, burocratizações, governos municipais frustrantes, etc) rapidamente transformaram essa nossa esperança de ver o partido ser o que um dia se propôs a ser, em algo inócuo. Ou seja, em face aos acontecimentos, acabamos por concluir que o partido, nas atuais circunstâncias, não tinha mais condições de resgatar a direção correta.

Entretanto, ainda dentro desse período de “transição” do partido, que durou alguns anos, conseguimos juntar forças para realizar a primeira parte da nossa proposta com muito afinco, acreditando, com ela, ajudar no resgate de um PT de lutas, desafio que alguns outras pessoas e setores também vinham se dedicando. Decidimos, todos os integrantes do núcleo, nos dividir em duplas para o contato pessoal com os moradores do bairro em suas residências, entregando-os o referido questionário. Foi em torno dessa atividade que ocorreu a já mencionada experiência marcante.

Antes, porém, nas reuniões preparatórias nos persistia a grande dúvida quanto à forma que deveríamos abordar as pessoas. A preocupação se fazia, sobretudo, em relação à resistência e à repulsa que imaginávamos que os moradores teriam à nossa iniciativa e à nossa pessoa caso fôssemos nos apresentar como integrantes do núcleo petista do bairro.

Já era um tempo de grande menosprezo ao assunto de “política”. Além do mais, questionávamos se não haveria da parte das pessoas o entendimento de que estaríamos querendo instrumentalizá-las para os interesses partidários, como comumente fazem os que costumam visitar as pessoas em suas casas (integrantes de seitas religiosas, vendedores, etc).

Apesar de toda essa preocupação de fundo, que em um determinado momento suscitou-nos a alternativa de sequer nos colocarmos como integrantes de um núcleo partidário - alternativa essa que foi a seguir descartada -, decidimos, por fim, encarar o desafio partindo para as ruas, com o que chamam de “a cara e a coragem”.

Cada dupla ficou responsável por determinadas ruas do bairro. A tática era bater, de casa em casa, informando que éramos do núcleo do PT e que estávamos realizando uma pesquisa com os moradores visando conhecer a sua opinião sobre os problemas do local, para chamá-los, a seguir, à mobilização visando a solução. O objetivo era deixar o questionário no sábado para voltarmos no dia seguinte a fim de recolhê-lo. Solicitávamos que o mesmo fosse preenchido pelo morador responsável da residência.

Essa pequena experiência foi surpreendente em diversos aspectos. Num primeiro aspecto, porque pudemos constatar - alguns de nós moradores há décadas no local - a existência de inúmeros cantos, vielas, aglomerados, cortiços, quartos com banheiro coletivo escondidos dentro do bairro até então por nós ignorados.

A idéia normal que todos temos dos bairros populares do subúrbio é que são formados de casas, ainda que modestas, beirando as calçadas das ruas. Dificilmente consegue-se visualizar o conjunto de famílias que vivem atrás das fachadas, dos muros, em condições precaríssimas obrigadas ao confinamento. São residências antigas, normalmente dos pais de filhos e/ou filhas que se casam e, porque não podem ter casa própria, acabam construindo cômodos e puxando para o interior das mesmos novos integrantes (esposa(os) do(as) filho(as), netos, cunhados, etc), reunindo, muitas vezes, dezenas de pessoas acomodadas (e incomodadas!) dentro de espaços que foram inicialmente projetados para um família de, no máximo, 4 ou 5 pessoas. Essa foi, na ocasião, a nossa constatação: que o número de moradores em residências consideradas “favelas”, “cortiços”, etc. na verdade é muito maior do que a estatística oficial do governo porque esta não consegue muitas vezes chegar a esses cantos escondidos.

O outro aspecto muito marcante dessa experiência foi a oportunidade de desconstruirmos completamente as nossas avaliações políticas sobre os moradores, os ditos “cidadãos comuns”. Como dito, fomos às suas casas, ou mais precisamente, às suas residências, aguardando uma receptividade, no mínimo, fria, ao acharmos que a maioria estaria ali mergulhada nos seus afazeres domésticos acumulados durante a semana e não teria o interesse, seja por falta de tempo, seja por falta de consciência política, de nos receber. Para piorar a nossa expectativa, estava o nosso vínculo com a questão político-partidária, de modo que esperávamos até mesmo agressividade e desaforos de alguns mais exaltados.

Mas foi grande a nossa surpresa. Não só nada disso ocorreu como justamente ocorreu o contrário. De um modo geral, a recepção dos moradores, sejam dos homens, mulheres, jovens, idosos e crianças, foi de uma fineza realmente comovedora e surpreendente. E não só da porta para fora. Muitos, inclusive, faziam questão de que entrássemos nas suas residências, expondo a sua privacidade domiciliar, num gesto de grande confiança em nós por conta daquilo que estávamos nos propondo a fazer.

Ao contrário também da sua suposta “alienação política”, descobrimos um grande número de pessoas (estes que as esquerdas intelectuais às vezes chamam de “massa atrasada”) com muita lucidez e indignação em relação aos problemas do bairro, da cidade e do país. E mais. Demonstrando-se às vezes tão dispostos a aprofundarem a nossa proposta política, que nós mesmos tínhamos que pedir licença para nos retirar, caso contrário ficaríamos ali presos por horas no debate.

O fato é que a maioria dos questionários entregues foram preenchidos e devolvidos, com direito, em vários momentos do nosso retorno, à continuação do debate político. As respostas de modo algum foram genéricas ou superficiais. Quase todas apontaram os problemas reais e as medidas concretas necessárias para saneá-los. Infelizmente não tivemos como dar continuidade à iniciativa pois o núcleo carecia de mais pessoas e sobretudo faltou um projeto coletivo para dar uma maior organicidade àquela ótima proposta. O PT, definitivamente, estava seguindo em outra direção.

Essa experiência política direta com o povo que vivemos por diversos fins-de-semana no bairro de Água Santa e adjacências (fora os meses de preparação e reflexão), não fosse uma realidade vivida e comprovada, certamente seria considerado por muitos, inclusive pelos militantes do PT, como uma ficção, um idealismo, uma utopia, uma irrealidade. Isto porque o povo, historicamente, sempre foi enxergado da forma mais míope e equivocada possível pelas esquerdas no país e no mundo. E é esse um dos motivos por que o PT (e as esquerdas em geral), nas últimas duas décadas, principalmente quando finalmente assumiu o poder central, acabou virando “farinha do mesmo saco” na política, para a decepção nossa e de muitos sonhadores.

Mas o que sempre ficou como legado para a luta das futuras gerações são sempre os bons exemplos do passado. As traições, ao contrário, só são lembradas como tais e nada mais.

Rio de Janeiro, 18 de maio de 2008.

RINALDO MARTINS DE OLIVEIRA

QUAL FÉ, QUE POLÍTICA ?

Normalmente as discussões sobre fé e política limitam-se a uma análise meramente filosófica dessas duas dimensões humanas. A fé em questão não é a de Jesus mas somente a fé em Jesus; a política não é a prática concreta dentro da realidade conjuntural mas simplesmente a teoria que se defende, ainda que repleta de boas intenções e idealismos.

Quando é assim, o reconhecimento da relação entre fé e política acaba por manter-se relativizado, ou seja, aceita-se a sua interligação até o momento em que uma não interfira no “modus operandi” da outra. A partir daí, fé e política se distanciam possuindo suas próprias razões e dinâmicas, devendo ser exercidas com a autonomia que supostamente lhes é intrínseca.

Por conta dessa tendência, falar genericamente de “fé e política” não basta para se garantir uma reflexão profunda e conseqüente. É preciso, antes, definir qual fé e que política realmente estão em avaliação.

A aceitação de Jesus Cristo como responsável pela redenção dos homens e da humanidade é importante na medida em que leve à reflexão da fé do Jesus histórico como centro referencial. Caso contrário a fé acaba por limitar-se a um assunto íntimo e privado de cada indivíduo e que, como tal, não pode ser posto em avaliação crítica senão pelo seu próprio detentor.

Por sua vez, a construção ideológica de um projeto para o qual se disputa o poder político sobre as organizações humanas deve conduzir à reflexão da prática concreta (tática) que se desenvolve em cada contexto histórico que se está inserido. Do contrário, a discussão sobre política não sairá do nível do abstracionismo permitindo, na prática, que cada agente político exerça suas ações de forma a atender o seu próprio juízo, minimizando e condicionando, ao calor de cada conjuntura, a observância dos princípios e valores humanos que, no entanto, são universais e atemporais.

Somente o modo centrado na práxis de Jesus é que garante a abertura para uma reflexão concreta e bem enfocada sobre fé e política. Pois aqui torna-se necessário confrontar a Sua fé e a correlata prática com a nossa fé e prática, devendo esse método dialético suscitar-nos uma exigente e permanente autocrítica, o que não ocorre quando a abordagem da questão é meramente filosófica.

Os Evangelhos deixam muito explícito que a fé de Jesus era toda calcada em torno do conceito, por Ele mesmo cunhado, do “Reino de Deus”. Não apenas o Reino de Deus que está por vir (o Paraíso), mas sobretudo o mesmo Reino de Deus que já está presente entre os homens na sua realidade terrenal, ainda que em estado de germinação.

É a convicção profunda dessa verdade que leva Jesus a dedicar todos os seus cuidados e energias em defesa dos discriminados/excluídos na sociedade de sua época. A sua lógica era simples e objetiva: se o Reino não é apenas uma promessa futura mas se oferece aos homens já nessa realidade presente, então não é admissível que alguns indivíduos, cheios de si, tentem impedir a sua implementação provocando uma situação social contrária aos desígnios de Deus.

Aliás, a radicalidade de algumas figuras que passaram por aqui, como Che Guevara, Gandhi, Zumbi, Zapata, D. Oscar Romero e muitos outros, contra os poderosos do seu tempo, ao ponto de abrirem mão da sua própria vida pela causa da Justiça, só se pode explicar a partir da mesma fé radical que impulsionou Jesus: fé na possibilidade real de uma co-existência humana já aqui na própria Terra, livre das estruturas que causam a opressão, a injustiça, o sofrimento e a morte antes do tempo (a denominada fé antropológica cunhada pelo saudoso teólogo católico J. L. Segundo).

É a partir dessa forte convicção de que o Reino de Deus já está em processo de realização que Jesus tem e traça sua tática e estratégia política. Escolhe os líderes religiosos e não o império romano (ao contrário do que fazem os grupos zelotes - insurgentes armados do seu tempo) como o seu alvo central de ataque e denúncia, em defesa dos pobres, marginalizados e oprimidos.

Na verdade, Jesus decide por essa via não porque queria se ater às "discussões religiosas", mas movido por uma compreensão ampla e profunda da conjuntura vivida naquele momento. Obviamente, a construção do Reino de Deus na Terra passava também pela ruptura do regime opressivo imposto pelos romanos (p.ex. Jesus chama Herodes de “raposa”, cf. Lc 13,32-33). Não obstante, efetivamente não eram os romanos e seus governos, ainda que muito violentos, os principais agentes propagadores, à consciência das massas, dos valores contrários aos do Reino de Deus, mas sim os líderes religiosos. Eram principalmente esses "representantes de Deus" que ameaçavam a implementação do Reino junto ao povo de Israel.

Observa-se que é esse o critério utilizado por Jesus na escolha de suas táticas políticas: centrar-se rigorosamente na estratégia da defesa intransigente dos valores humanos inerentes ao Reino de Deus. Oportuno aqui atentar que Jesus não coloca, nesse bojo, a preocupação - que era predominante entre os seus contemporâneos - com a restauração da monarquia davídica, ainda que em momento nenhum demonstre discordância dessa forte idéia fixa do povo. Pelo contrário, aproveita-se dela em diversos momentos para transmitir a sua mensagem do Reino de Deus.

Para Jesus o mais importante não é a instauração de um sistema político de poder ainda que o mais “perfeito”. A sua mensagem é especifica: Amar ao próximo que, para Ele, representa paradoxalmente, amar aquele mais “distante”, o marginalizado e excluído da sociedade. Também o inimigo é tido, por Jesus, como o próximo a quem se deve amar. O perdão, no caso, faz-se a maior expressão desse amor.

Percebe-se claramente que sua preocupação está toda em colocar os valores da fraternidade, que se aplicam a cada situação humana, na frente de qualquer projeto, ideologia ou sistema de poder. Essa é sua grande novidade. Obviamente, Jesus não nega importância às formas específicas de organização humana tanto que combate a estrutura teocentrica autoritária controlada pelos religiosos. Para Jesus, as estruturas, para se tornarem legitimas, devem existir submetidas e orientadas pelos valores do Reino (“Dê a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”).

Enfim, Jesus resume, com muita sabedoria, todo o seu projeto e práxis nessa frase: “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça e tudo o mais virá por acréscimo” (Mt 6,33).

É claro que Jesus foi tentado a se afastar do projeto do Reino de Deus. A pressão vinha de pessoas, de fatos, de situações, do sistema, do demônio, etc. Todos tentavam levá-lo por outros caminhos. Mas foi a clareza e fidelidade em relação aos princípios do Reino que o manteve firme, sem medo de provocar conflitos, nem com as autoridades, nem com o povo, nem mesmo com as pessoas mais queridas. Os que tentaram desviá-lo do caminho receberam respostas duras e reações inesperadas, pois seu princípio político sempre foi o voltado para defender os valores do Reino como centro de tudo.
*
Tendo como referencial essa fé e prática política de Jesus, centrada no seu conceito de Reino de Deus, é que devemos questionar:

a) até que ponto a nossa fé cristã e prática política têm sido baseadas realmente na defesa dos valores do Reino de Deus?

b) para dar um exemplo concreto: até que ponto a política de alianças que os cristãos militantes mais engajados vêm implementando no nosso país e no mundo tem sido realmente coerente com a defesa desses valores do Reino?

c) afinal, que tipo de tática política Jesus adotaria na atual conjuntura histórica? Faria aliança com os grupos políticos ou com o “povão”?

Saudações Cristãs,

12/12/08
RINALDO MARTINS DE OLIVEIRA

O QUE FAZER DE CONCRETO PARA MUDAR A REALIDADE

Seguem abaixo algumas reflexões que tentarão responder a pergunta do título deste artigo. Como poderá ser observado, não se trata aqui de idealizar fórmulas ou métodos práticos. O desafio maior de todo o processo transformador e de ruptura de estruturas cristalizadas (como o atual sistema capitalista) é o de consolidar PRINCÍPIOS. Por meio do seguimento radical e inflexível destes é que se poderá construir e chegar às condições possíveis para se alcançar tais fins estratégicos. Por outro lado, isso não ocorrerá justamente se no lugar desses princípios maiores, outros elementos sobrepuserem-se, como teremos a oportunidade aqui de avaliar e questionar.

1) TER COMPAIXÃO, PARA ALÉM DA INDIGNAÇÃO.

Em primeiro lugar, só haverá luta real por transformações das estruturas opressoras se nela estiver presente e forte o espírito de compaixão para com a dor dos que sofrem injustiças. Comumente confunde-se compaixão com indignação, mas são valores que, apesar de muitas semelhanças, possuem matizes diferentes. A compaixão tem como objeto sempre os seres e/ou pessoas concretas que estejam sofrendo por conseqüência de injustiças contra elas cometidas em circunstâncias diversas. Já a indignação foca o seu objeto não no injustiçado, mas nas próprias injustiças.

Sabemos que a compaixão sem indignação transforma-se em sentimentalismo e, muitas vezes, em derrotismo. Não obstante, o que estamos propondo aqui é uma reflexão sobre como os homens e mulheres de boa vontade, ou seja, os que já têm algum engajamento sócio-político, devem se posicionar no processo da ação transformadora. A verdade é que, nos meios políticos organizados, a carência maior não é tanto no aspecto da indignação e sim no da compaixão. Tem-se, muitas vezes, avaliação crítica para tudo, calcada numa capacidade de ativação do raciocínio. Falta, contudo, o lado emotivo, afetivo, subjetivo, único capaz de enxergar o povo não como uma massa, e sim como seres humanos concretos e individualizados. Somente assim poder-se-á tê-lo como sujeito da história.

2) SALVAR 1 BILHÃO DE CRIANÇAS DO SOFRIMENTO E DA MORTE.

No meu entender, não há nada mais cruel e terrível, no mundo – por isso sendo realidade a partir do qual todos os homens e mulheres de bem devem concentrar toda a sua energia - do que crianças sofrendo privações dos mínimos recursos necessários para o seu bem-estar e desenvolvimento físico, intelectual, psíquico e afetivo. Isto porque são seres humanos que ainda não têm compreensão das injustiças dos homens e não separam a existência - principalmente a sua própria existência – da realidade concreta em que estão inseridas.

Até uma determinada idade, a criança que costuma passar fome, sede, frio, fraquezas e dores resultantes das doenças provocadas pela sua situação precária, interpreta, no seu foro íntimo, que a vida é isto mesmo: que nasceu para viver deste jeito sofrido. Não tem outra opção senão conformar-se com o seu estado, tal como o cachorro sardento com as suas pulgas e feridas espalhadas pelo corpo a procura de restos nos lixos.

Portanto, o horror da miséria não está só em ver um ser tão pequeno, frágil, inocente e indefeso definhar fisicamente (como nas imagens das crianças raquíticas da África), mas também em saber que a sua subjetividade, sua imaginação criativa, sua alegria espontânea, sua delicadeza, seu impulso e abertura natural para o outro, o seu sentimento de segurança e bem querença, tudo isto está sendo barbaramente violentado, negado. Enfim, que o seu foro mais profundo está sendo atingido da forma a mais devastadora e desumana possível.

Olhando e encarando de frente esta realidade que não é de uma, nem de mil, nem de 1 milhão, mas de, pelo menos, 1 BILHÃO de crianças espalhadas por todo o mundo, principalmente nos países dos chamados terceiro e quarto mundo, é que entendo que nós - homens e mulheres de boa vontade– devemos, chamados pela nossa própria consciência, refletir profundamente se temos, até agora, feito a coisa correta no sentido de realmente combater esta situação de sofrimento e de dor humanamente inimagináveis na qual, sobretudo, as nossas crianças estão submetidas. Essa violência legalizada, institucionalizada, como diz Alceu de Amoroso Lima no livro “Violência ou não?”: “realiza o desfibramento de um povo e o torna ou o conserva apático, submisso, conformado no seu servilismo ou sufocado pelo medo e pela necessidade de sobrevivência”.

3) FAZER A COISA CORRETA.

Esclarecendo melhor, não proponho a reflexão sobre se estamos fazendo alguma coisa. Indago se estamos fazendo a coisa correta. Ou seja, se estamos atuando (isto, se estivermos!) a partir de uma perspectiva de indignação meramente questionadora da realidade, mas sem conseqüências concretas e profundas, ou se estamos atuando a partir de um projeto coletivo realmente voltado, com toda a eficácia e radicalidade necessárias, para atingir e derrubar as bases sustentadoras das estruturas que criam tais injustiças sociais.

A reflexão talvez possa aparentar redundante, pois “fazer algo” pressupõe que se deva ter o conhecimento e a certeza da eficácia e firmeza desse agir, no sentido de alcançar o seu objetivo último: a transformação das estruturas opressoras. Não obstante, na prática, percebe-se que a questão não é tão óbvia assim, pois os meios e os fins quase sempre têm sido, na ação política concreta em geral, entendidos e trabalhados com tamanho grau de independência uns dos outros que, não poucas vezes, tornam-se explicitamente contraditórios e opostos entre si, comprometendo qualquer oportunidade de avanço qualitativo da luta.

Entendo que no agir político, a questão fundamental é saber se os instrumentais gerais que hoje podem servir à causa da luta da libertação popular - instrumentais estes surgidos e construídos a partir de um complexo de fatores ocorridos sempre dentro das relações de poder e da permanente “luta” (ainda que não aberta, explícita e declarada) entre as classes oprimidas e opressoras – estão sendo utilizados pelas pessoas tidas “de boa vontade” e suas eventuais organizações realmente para tal fim, ou têm sido desvirtuados para outros interesses.

4) ATUAR DENTRO MAS NÃO A PARTIR DA ORDEM BURGUESA.

A minha avaliação quanto à inevitabilidade de um confronto direto (armado ou não) com os agentes protetores do poder burguês (as forças militares e para-militares, sobretudo) no processo final de ruptura com a atual estrutura de opressão - o sistema capitalista - continua a mesma. Não obstante, entendo que até antes dessa etapa decisiva há um longo e tortuoso caminho a percorrer de preparação do terreno, dentro da ordem constituída. Contudo, aqui está o centro permanente do problema da atuação política. Para mim, percorrer as etapas dentro da ordem constituída não deve, ou não deveria, se confundir com percorrê-las a partir dessa ordem, adotando-se a sua lógica de poder.

Mas, infelizmente, vejo que é isto que, na prática, tem acontecido. E hoje, praticamente, não há pessoa ou setor que, mesmo dizendo-se de bem (ou “de esquerda”), sobretudo quando constituídos minimamente de instrumentais concretos (mandato representativo, direção de entidades, recursos materiais e humanos, etc) que poderiam estar disponíveis para a luta concreta popular, não tenham caído na tentação de fazer desses instrumentais meios a serviço de suas próprias ambições individuais e/ou de grupo. Assumem, ainda que não se tenha a plena consciência disso (e é bom, para os dominantes, que isto não ocorra), o exato papel político que as elites querem que cumpram para ajudar a manter a situação e a ordem das coisas como estão.

5) TER O POVO COMO PROTAGONISTA DAS AÇÕES POLÍTICAS.

Portanto, a única forma possível para efetivamente se subverter, dentro da ordem constituída (enquanto não se pode romper totalmente com ela), a lógica e as regras do jogo estipuladas pelos poderosos, é ter sempre o povo como protagonista de toda a ação tática e estratégica política, que se venha querer desenvolver (seja qual for e com quais instrumentais se tiver em mãos). Mas povo, aqui, não pode ser aquela instância abstrata como normalmente os movimentos organizados costumam considerar. Povo deve ser entendido como uma composição de pessoas reais, indivíduos humanos que têm, para além das necessidades materiais, também desejos, vontade, voz, braços e pernas, raciocínio, iniciativa, valores, etc. capazes de porem-se, com altruísmo, ao enfrentamento dos maiores riscos e desafios em defesa da sua dignidade.

6) AS CONDIÇÕES OBJETIVAS E SUBJETIVAS JÁ EXISTEM.

Como, concretamente, tornar isto possível? Não é necessário, como as esquerdas em geral analisam, acontecer um momento de crise generalizada para que as massas possam se envolver em algum processo libertário concreto. A história tem demonstrado que esse processo não ocorre como uma fórmula determinista. Mesmo nas conjunturas adversas é possível e necessário construir a luta coletiva pela libertação. Aliás, ao contrário do que comumente se imagina, não há dificuldades tão grandes e intransponíveis para uma ação direta nesse sentido.

Na verdade, com os instrumentais, digamos, organizativos que hoje existem, fruto de todo um processo histórico de lutas e avanços democráticos a nível mundial e com o atual acumulado de uma subjetividade coletiva amadurecida na experimentação dos valores e desafios diversos suscitados pela modernidade, sobretudo a partir da década de 60, ouso dizer que já há as condições OBJETIVAS e SUBJETIVAS necessárias para que a médio e longo prazo possamos ver acontecer a ruptura, a partir da intervenção popular, dessa estrutura opressora em que vivemos, sobretudo nos países oprimidos e, em especial, no nosso país.

7) CONCLUSÃO: É PRECISO ALTRUÍSMO E COMPAIXÃO

Em outras palavras, não estamos saindo do zero para o início de um profundo processo transformador da nossa sociedade. A análise da conjuntura não pode nos confundir no prognóstico estratégico: as condições SUJETIVAS e OBJETIVAS para as necessárias transformações estruturais, conforme acima, estão aí, como nunca, em situação de potencialidade. Mas do que a fatores externos, cabe hoje aos homens e mulheres de bem, em especial aos que detêm instrumentais importantes que podem ser postos à disposição da luta e organização coletiva, o desafio de atuar da forma correta para que o processo a ser iniciado possa tomar projeção popular/ de massas e seguir caminho.

A forma correta, vale repetir, é ter o povo rigorosamente sempre como protagonista das ações táticas e estratégicas. Para tanto, é preciso que as pessoas de bem e suas organizações estejam imbuídas de valores realmente altruístas e de compaixão, esperando profundamente servir e não serem servidas, esperando “desaparecer” para fazer crescer a ação coletiva e, neste processo, fazer surgir a vanguarda revolucionária autêntica. É preciso entender que os instrumentais institucionalizados só têm sentido se forem colocados à disposição do povo para ajudá-lo no processo de crescimento organizativo e social. Há que se trabalhar junto com o povo, não pelo povo.


Rinaldo Martins de Oliveira
MARÇO/09

O NATAL E A IMPORTÂNCIA DO TESTEMUNHO DE FÉ

É notório que os quatro Evangelhos canônicos foram escritos movidos por uma preocupação essencialmente catequética: a de ajudar as comunidades cristãs, que surgiam naquele momento, na reflexão e seguimento do Mestre.

O Natal, conforme encontrado em Mateus e Lucas, dentro desse contexto, é relatado não com o mero objetivo de ser um registro histórico do início da vida de Jesus de Nazaré, mas com o propósito de se oferecer como uma “chave”, dentre outras tantas que podemos vislumbrar na leitura dos evangelhos, que permite uma abertura interpretativa para o entendimento do complexo e misterioso significado da morte e ressurreição de Cristo.

Esse evento pascal, inquestionavelmente, se impunha como assunto central às comunidades que se formavam em torno dos apóstolos e discípulos de Jesus, tornando-se paradigma para o entendimento de toda a passagem histórica do Messias na Terra e de todo o Antigo Testamento.

Nas referidas narrações evangélicas natalinas, chama-me especial atenção como os evangelistas “trabalham” a caracterização dos personagens que compõem tal cenário, muito provavelmente com o intuito de remeter a cena à realidade vivida pelos cristãos de então e demais pessoas frente ao grande e difícil desafio de aceitação do testemunho dos que afirmavam ter presenciado a ressurreição de Jesus.

Concentrando-nos na reação de cada um dos personagens do início dos evangelhos de Mt e Lc, diante da anunciada concretização do projeto de Deus, que seria a vinda, ao mundo dos homens, do “filho de Deus”, podemos observar a pretensão didática de se destacar duas posturas opostas: uma, a de Maria que, movida pela fé, demonstra profunda abertura para aquele projeto misterioso e glorioso em curso; outra, a dos demais personagens, que apegados a uma visão “humana, demasiadamente humana” do mundo e da existência, não conseguem entender e, conseqüentemente, aceitar nada que fuja do seu padrão paradigmático.

Maria aceita a missão, anunciada pelo anjo, de gerir o Salvador com a frase: “Eis aqui a escrava do Senhor. Aconteça comigo segundo tua palavra” (Lc, 1,38). São poucas e profundas palavras registradas para imprimir uma imagem exata da reação firme e decidida da Mãe de Deus, diante do miraculoso e sobrenatural anúncio. Quanto à indagação de Maria ao anjo de como a sua gestação, na prática, se faria possível (“Como poderá ser, pois não conheço homem?”, Lc 1,34), a mesma não reflete uma incerteza. Pelo contrário, está registrada justamente para reforçar a tese do evangelista da profunda segurança de Maria: por estar totalmente convicta de que Deus tudo pode para realizar o seu desígnio, Maria permite-se até mesmo o direito de indagar como o processo ocorrerá.

Reação absolutamente contrária encontramos, em primeiro lugar, em José, noivo de Maria. Ao ter o conhecimento da gravidez de Maria, mesmo certamente com a explicação do fato vinda por ela própria, decide ainda sim abandoná-la (cf. Mt 1,19). Ou seja, não acredita, de início, em suas palavras. Zacarias, esposo de Isabel, também duvida da possibilidade do nascimento de seu filho João, mesmo sendo anunciado pelo próprio anjo do Senhor, chamado Gabriel, como parte do Projeto glorioso de Deus (cf. Lc 1,17-18).

No campo externo, encontram-se os magos que apesar de não duvidarem do nascimento do “rei dos judeus”, conforme previa a antiga profecia, ainda sim depositam essa confiança, não na fé, mas no estranho fenômeno cósmico do surgimento ou brilho de uma estrela no Oriente (cf. Mt 2,2), certamente captado por observação científica (magos = cientistas da natureza). Tanto ignoram o significado verdadeiro e a dimensão mais profunda desse nascimento, inclusive toda a sua implicação política, que, ingenuamente, vão procurar justamente o rei Herodes para indagar a localização do “rei dos Judeus” que acabara de nascer, entendendo eles que fosse para esse último também um acontecimento positivo.

Em resumo, a partir dessa contraposição entre a atitude de diversos personagens envolvidos na mesma trama do nascimento de Jesus, os evangelistas querem retratar similar problemática posta com a questão, já então tornada pública para milhares de pessoas, do fenômeno da Ressurreição de Jesus.

Ou seja, tal como Maria, receptiva às palavras anunciadas pelo anjo, há os que estariam também abertos para aceitarem como verdadeiros os testemunhos dos apóstolos e discípulos, acerca do anúncio da ressurreição. Entretanto, tal como José, Zacarias e os Magos, há também os que estariam tendendo – como seria naturalmente o mais provável que ocorresse com a maioria dos membros das comunidades – para grandes incertezas e inquietações a respeito dos testemunhos oculares do fato, afinal, extraordinário e absolutamente único na história humana.

Não obstante, os relatos natalinos não param por aí. Cuidadosamente, após deixarem impressa a diferenciação da conduta firme de Maria e incerta dos demais personagens, partem para um segundo plano onde se destaca o processo de transformação interna nesses últimos (cf. Mt, 1,20, Mt 2,12 e Lc 1,20), a chamada conversão, que lhes possibilita finalmente o entendimento mais profundo do projeto de Deus em curso na figura de Jesus.

Essa transformação que se opera em José, Zacarias e nos magos se dá a partir do testemunho de fé de Maria. É com base na profunda seriedade e convicção com que Maria assume o seu papel de gerir e ser mãe do Filho de Deus, que tais personagens se convencem da veracidade dessa “Boa Nova”. Não é algo que se possa ler explicitamente nos Evangelhos, mas que se faz concluir pelo bom senso, desafio interpretativo que os livros sagrados nos convidam, a todo momento, a fazê-lo.

José, pelo que conhecia a grande pessoa, cheia de virtudes e valores, que era Maria, convence-se pelo anjo a recebê-la. Mas não um recebimento passivo e resignado. Ele mesmo, agora, se faz confiante no projeto que se anunciou primeiramente a Maria (cf. Mt 1,20-23).

Zacarias, já após seis meses de reflexão sobre o anúncio do anjo a respeito da gravidez de sua esposa e sobre os planos de Deus inerentes a essa gestação, deve ter aprofundado ainda mais a reflexão desse mistério, de forma decisiva, quando da visita de Maria a Isabel. Ali se registra o efeito grandioso que a saudação daquela mulher, escolhida entre todas e grávida de Deus, provocou na criança (João) no seio de Isabel, fenômeno que a Igreja interpreta como sendo o batismo do Espírito Santo em João e que produziu nessa última a exclamação que mais profundamente caracteriza e qualifica Maria: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre!” (Lc 1, 42).

Quanto aos magos, certamente há uma reação de grande surpresa com a realidade que encontram ao se depararem com Maria e Jesus na manjedoura. Levam presentes – ouro, incenso e mirra – comumente oferecidos a príncipes e reis. Muito provavelmente os evangelistas querem passar que os magos não esperavam que o “rei dos judeus” pudesse nascer tão destituído de poder, advindo de uma família tão humilde como aquela. Não obstante, o maravilhoso clima de transcendência da realidade com que Maria deve ter impresso à circunstância, certamente marcara profundamente a mente e coração dos magos que, “avisados em sonho de não retornarem a Herodes, voltaram para sua terra por outro caminho” (Mt 2,12). Uma demonstração clara e explícita de mudança radical da compreensão daquele acontecimento, comprovada pela decisão muito grave que tomaram e que os tornaria inimigos do rei Herodes (e, por conseguinte, de todo Império Romano), acabando por motivar a matança dos inocentes, conforme Mt 2, 16-18.

Enfim, a partir dessa rica reflexão do processo interno de mudanças de paradigma e resgate da fé, ocorrido entre tais personagens da cena natalina, suscitado sobretudo pelo reconhecimento da autoridade (testemunhal) de Maria, é que as comunidades cristãs, que começavam a conhecer os escritos copilados nos Evangelhos, poderiam também fortalecer a certeza da factualidade do fenômeno pascal, conforme testemunhado pelos apóstolos e discípulos de Cristo.

Trata-se ali de uma influência, ainda que indireta, da mais apurada hermenêutica paulina que pretende dar resposta às inquietações das comunidades cristãs sobre o real ocorrido em relação ao fenômeno da Ressurreição do Mestre Jesus. A fé nesse acontecimento fenomenal não poderia se consolidar não houvesse sido testemunhado concretamente por alguns.

Concluímos, daí, que a fé nAquele que “ressuscitou dos mortos”, desde o início do cristianismo nunca foi algo dado. Ou seja, mesmo para aqueles homens e mulheres das primeiras comunidades cristãs que viveram tão próximos da ocorrência temporal do evento, a construção dessa fé só se fez possível por conta da fé no testemunho transmitido pelos poucos que presenciaram de perto as aparições físicas de Jesus.

Jesus se apresentou em carne e osso exclusivamente a esses poucos não com o propósito de lhes dar esse “privilégio”. A verdade é que Jesus, desde o início da sua vida pública, preparou-os para que pudessem melhor testemunhar à humanidade esse ocorrido e o Novo Testamento mostra fartamente que o fizeram à altura da missão designada pelo Senhor, não poupando sacrifícios pessoais.

Portanto, podemos entender que para a construção e consolidação da fé em Deus e em seus planos para a humanidade, tão importante quanto o fato concreto da Ressurreição do seu Filho está também o testemunho pessoal transmitido pelos que guardam essa fé.

Na verdade, dois milênios distantes da morte e Ressurreição de Jesus, continuamos, geração após geração, experimentando esse mistério e construindo a fé no nosso Senhor, não por outro meio senão pelo testemunho dos que se fizeram seus discípulos, conforme seu desejo (cf. Mt 28, 16-20). Em resumo: quando se diz que o seguimento de Cristo se dá a partir do encontro pessoal com Ele e adesão a Sua mensagem e à vida que Ele viveu, isso só se faz possível justamente porque podemos experimentá-lo primeiro nas pessoas que lhe dão e deram testemunho.

NATAL DE 2008.

RINALDO MARTINS DE OLIVEIRA

COMO PODE TER SURGIDO O MAL NO CORAÇÃO HUMANO

Estudos psicológicos demonstram que já nos segundos iniciais da vida extra-uterina, o bebê sofre a sua primeira grande crise existencial ao se defrontar com uma situação física e psíquica absolutamente estranha e ameaçadora à sua integridade, impondo-lhe uma sensação de impotência que o angustiará para vida inteira. É observável que a forte reação cardíaca do recém-nascido e o seu semblante visivelmente de desespero refletem o seu instinto de auto-defesa no propósito do retorno urgente ao conforto e segurança do útero materno. Obviamente será esta uma tentativa vã pois a vida já lhe exige seguir adiante encarando os primeiros desafios à sobrevivência.

Este profundo mal estar inevitável no começo da vida de cada pessoa resume, na verdade, a história permanentemente tencionada da humanidade. Esta, desde os seus primórdios, tem sofrido, como drama maior seu, o conflito entre o desejo de retroceder ao seu estado originário e a necessidade de prosseguir sempre para um estágio original.

É notório, como bem descreve o intelectual italiano Domenico De Masi, no livro “Criatividade e Grupos Criativos“, que tal tensão intrínseca à existência humana ajudou a alavancar importantes avanços intelectuais e científicos libertadores na história da humanidade. Não obstante, o referido impasse existencial, a meu ver, também suscitou todas as neuroses humanas que, principalmente, se têm consolidado, no decorrer dos últimos milênios, em mega-sistemas de poder como o escravismo, o feudalismo, o absolutismo, o capitalismo, o fascismo e o totalitarismo.

Avalio que esta doença coletiva (a denominada “peste emocional”, por Wilhelm Reich) veio surgir no nosso meio no determinado momento em que o ser humano, descobrindo-se constituído de racionalidade e vislumbrando a capacidade de impor-se frente à natureza e de alterar o curso da sua história, imaginou, de pouco a pouco, ser também viável pôr fim à dor desta tensão primeva (desejo x necessidade), desenvolvendo o maior dos seus artifícios psicológicos: A IDÉIA DO PRESENTE COMO PARTE INTEGRANTE DO TEMPO.

A idéia do momento em que vivemos (o nosso quando existencial), como uma “instância temporal” ou um “período de tempo” entre o passado e o futuro, sendo enraizada na mente humana no decorrer de dezenas de milhares de anos, tornou-se, por fim, um dos tantos arquétipos construídos no inconsciente coletivo que traduzem o processo de significação do homem em relação à sua própria existência.

O poder específico deste arquétipo é o de neutralizar (na mente humana), atando ao presente, estas duas maiores forças existentes no interior humano, contrárias entre si e em permanente conflito: a força que puxa-nos para trás na direção do passado, das nossas ancestralidades, da nossa origem e a força que nos empurra para frente, no sentido do futuro, do desconhecido, do original, do ideal perfeito.

Analogicamente, concebemos desde então, o presente como uma flecha em movimento (regressivo, progressivo ou estático, retilíneo ou curvilíneo, dependendo do ponto de vista de cada um e das culturas) lançada por Deus ou pela natureza, acreditando-se que ele (o presente) “existe”, desde sempre, independentemente da nossa vontade e da nossa existência, sendo ao homem atribuída a nobre tarefa e o desafio de “encaixar-se”, ou melhor, intrometer-se neste “período temporal” e controlá-lo absolutamente.

Deste jeito, o entendimento do presente como uma faixa de tempo passível de manipulação pelo animal chamado Homem, permitiu, paralelamente, a idéia de que o passado e o futuro também, obviamente, pudessem ser controlados a partir dos esforços e recursos desenvolvidos, no decorrer da história, voltados para “esticarmos” o presente, cada vez mais, para trás e para frente, como que visando invadir o passado e o futuro.

Na direção do passado, o desafio tem sido o de preservá-lo vivo, utilizando-se desde recursos religiosos e espirituais da evocação dos entes ancestrais e antepassados até a alta tecnologia da gravação sensitiva (sonora e visual, sobretudo). As próprias ciências humanas e exatas também estão imbuídas da idéia central metodológica de interpretar os fatos sempre identificando em seus matizes supostas “sobrevivências” ou “continuidades” de fatos ocorridos anteriormente .

Na direção do futuro, a obsessão é o de antecipá-lo cada vez mais. Daí, por exemplo, a alucinada corrida tecnológica que transforma produtos recém-criados em objetos já automaticamente ultrapassados e até obsoletos. O próprio crescimento do corpo vivo, animal e vegetal, também, cada vez mais, é induzido à rápida evolução. Vide o fenômeno do gigantismo das frutas, legumes e verduras provocados por fertilizantes. Também os animais recém-nascidos violentamente engordados e, após apenas alguns dias, “prontos” para o abate. Além do aumento considerável, no século XX, da média da estatura do corpo humano adolescente, a nível mundial (sobretudo nos países industrializados), o que sugere um procedimento orgânico correspondente à pressão (cultural e econômica) para a rápida “adultização” do jovem, numa perspectiva estritamente voltada para a sua sempre mais precoce inclusão no mundo do mercado de trabalho.

Vem sendo assim consolidado o sutil artifício psicológico cujo propósito é a tentativa do domínio e controle total do passado e do futuro, elevando os homens à condição de deuses, tal como o herói do filme holiwodiano que muda o sentido da rotação da Terra para voltar o tempo e salvar a amada da morte ocorrida no passado.

Deste artifício da mente humana seguirá o anestesiamento da dor da tensão maior provocada pelo conflito entre as duas dimensões da existência e da história humana: passado e futuro. E a sensação da paz intra-uterina pode, enfim, reinar neste mundo, tornando-o um “Admirável Mundo Novo” conciliado, sem impasses e sem conflitos existenciais onde lobo e cordeiro poderão viver em plena harmonia.

Nasce, entretanto, proveniente desta paz fantasiosa, a neurose coletiva que inaugura em todos os níveis do psiquê dos indivíduos - com extensão aos povos e às sociedades - a legitimidade para que cada um possa criar o seu próprio mundo particular sem e contra quaisquer limites, inclusive éticos, que lhe possam impedir de usufruir e alcançar os prazeres desse “paraíso resgatado”.

Os impulsos internos do organismo humano envolto à tal sensação de “total liberdade” advinda do subconsciente e do inconsciente tendem a sobrepor-se a quaisquer regras (consideradas obstáculos) da convivência social. Pois se o limite do tempo - o maior de todos e que tanto provocou o mal estar à humanidade - foi e está sendo vertiginosamente superado, é legítimo que todo e qualquer outro limite, de qual ordem for, venha a ser relativizado.

Para o homem em geral, superar, a todo custo, suas próprias limitações (não tanto aprender a conviver sadiamente com elas), tornou-se já de muitos milênios o seu objetivo máximo de vida, a sua obsessão. Dentro desta filosofia todos os recursos valem ser utilizados para que tal propósito seja alcançado.

A Bíblia, no livro dos Gênesis, fabulosamente relata a origem da grande queda do Homem: este convenceu-se, pela serpente, ser tão poderoso quanto Deus. Ou seja, convenceu-se que tudo pode - ferir e matar inclusive, como fez Caim - para garantir o seu direito de prosseguir na direção à ruptura de todos os seus limites. Na linguagem bíblica: para ter acesso ao pleno Conhecimento do Bem e do Mal.


OUTUBRO DE 2007.

RINALDO MARTINS DE OLIVEIRA