quinta-feira, 21 de maio de 2009

UMA PEQUENA EXPERIÊNCIA REVOLUCIONÁRIA

No início da década de 90, umas dez pessoas formávamos o chamado “núcleo do PT” da Água Santa, bairro residencial de classe média baixa e popular da zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Era o tempo em que muitos ainda acreditavam que o PT, apesar de todas as limitações, problemas e contradições internas, fazia-se o pólo político dos movimentos sociais e dos indivíduos interessados em contribuir para as transformações macro-estruturais no país.

Havia naquela região - que engloba, além do bairro referido, também os bairros de Quintino, Piedade, Engenho de Dentro e grande Méier - 5 núcleos do PT que, somados, reuniam cerca de 100 militantes ativos e mais centenas de participantes eventuais. Ocasionalmente esses núcleos se encontravam em assembléias distritais normalmente para a escolha de delegados aos fóruns do partido. Vez ou outra também promovia-se em conjunto algum evento público. No mais, cada núcleo se contentava em realizar, do seu jeito, atividades políticas e culturais que envolvessem os seus próprios integrantes e convidados.

Nós, do núcleo Água Santa, o mais novo e menor dentre os que já existiam naquela região, entendíamos que faltava, por parte desses e outros núcleos, uma prática política mais consistente e direta junto aos moradores dos bairros. A realidade era que, salvo momentos excepcionais e ainda sim vinculados a uma agenda eleitoral (campanha de candidatos majoritários ou proporcionais), os núcleos se mantinham internalizados, voltados para si mesmos dentro da lógica da “auto-suficiência”, como se participar da estrutura e da dinâmica interna do partido (diretório, mandatos, reuniões, plenárias, assembléias distritais, congressos, etc) fosse já fazer política na sociedade.

Esta lógica “internista” era objeto da principal crítica nossa ao PT e à prática de seus núcleos. A atuação também no ambiente eclesial de alguns de nós integrantes do núcleo, proporcionava o aprofundamento da discussão do grave erro e das conseqüências nefastas desse modelo internista de organização. Pois a mesma crítica fazia-se às chamadas “paróquias”, estrutura de organização oficial da Igreja. Entendia-se que essas, também centradas em si mesmas, tornavam-se, contraditoriamente, o obstáculo maior ao exercício do papel missionário central da Igreja que seria o anúncio do Evangelho, reduzindo a Igreja a uma mera prestadora de serviços religiosos.

Por isso, os integrantes do núcleo petista de Água Santa entendíamos que a concepção de atuação partidária da maioria dos núcleos do PT levava-os a deturpações e desvios dos objetivos estratégicos do programa partidário centrado na questão do estímulo à participação direta da população no dia-a-dia da política, a partir da sua própria realidade local.

Desse modo é que surgiu, entre nós, a proposta da realização de uma atividade de ação direta junto aos moradores do bairro. Tratava-se de tentar concretamente motivar a população local a se mobilizar visando melhorias na própria comunidade. A tática seria trabalhar, em primeiro lugar, um pequeno questionário onde perguntávamos aos moradores quais eram os principais problemas do bairro e quais seriam as supostas soluções para resolvê-los. Após esta etapa, então, partiríamos para um segundo momento convocando os próprios moradores para um ato público reivindicando aos órgãos competentes providências quanto à solução do maior problema identificado na pesquisa. Chamaríamos, para esse evento, políticos da oposição e os aliados dos governos municipal e estadual visando comprometê-los. Tal ação seria uma dentre muitas outras que o núcleo estaria desenvolvendo, inclusive com o intuito de ampliar o leque de lideranças e das organizações locais para além dos limites do nosso próprio núcleo partidário.

Aqui faço um rápido corte para esclarecer - o que, de propósito, não fiz no início - que a minha intenção neste texto é de fazer uma breve reflexão desse momento rico (ainda que bem curto) que o nosso núcleo teve o privilégio de viver quando da execução da primeira etapa da nossa proposta, conforme acima. Posso afirmar, quase vinte anos depois, que foi aquele um momento que nos deixou grandes marcas, não tanto pelos resultados concretos almejados - que acabamos não alcançando em sua plenitude (como será melhor exposto abaixo) - mas pela própria experiência de uma ação no meio popular que nos confirmou e aprofundou a convicção filosófica e política de que era e continua sendo aquele modelo tático-estratégico – a ação direta voltada para a mobilização popular em torno de soluções de problemas concretos - o único caminho viável para que se possa construir o movimento político de massas em luta pela sua libertação integral, inclusive do jugo do capital.

Naquele início dos anos 90 quando constituímos o núcleo petista de Água Santa, a conjuntura político-partidária brasileira, afetada pelas derrocadas do socialismo real nos países europeus e União Soviética, já apontava visivelmente o declínio e descaracterização do movimento partidário de esquerda, especialmente do PT, sendo o maior partido desta corrente ideológica e que englobava os diversos setores políticos progressistas da sociedade.

Apesar da existência dos núcleos e de alguma autonomia e poder que eles possuíam dentro do partido, este, a partir das suas cúpulas, já se organizava todo voltado para a questão eleitoral. Isto, na realidade, já era mais do que uma tática adotada pelos seus dirigentes, apesar das minimizações nos seus discursos. Tratava-se de um novo enfoque estratégico que vinha sendo de pouco a pouco digerido e consolidado, em substituição total ao programa originário do partido mais centrado na participação direta popular.

O contexto histórico-político naquela época ajudou enormemente a legitimar que tal guinada de rumo pudesse ocorrer sem muita reação das bases partidárias. Em primeiro lugar, era a primeira vez, nos últimos trinta anos, que experimentávamos as tão esperadas eleições diretas nacionais. E para fortalecer muito mais ainda o investimento total na política eleitoral, submetendo tudo e todos a ela, ocorrera em 1989 o “quase lá” da vitória de Lula e do PT. Mediante essa realidade, praticamente era impossível que o partido não viesse a ser seduzido pelo “canto da sereia” e mergulhar nas águas profundas, pesadas e lamacentas da política institucional.

Este pequeno corte histórico acabou por situar sobre qual contexto político-partidário o nosso núcleo petista de Água Santa se aventurava realizar uma ação política cuja direção acabava por ser totalmente oposta à direção já assumida pelo partido. Contudo, justamente por causa da expectativa que todos os militantes, com menos ou mais intensidade e realismo, tínhamos em torno da candidatura Lula, não nos era permitido, ainda, vislumbrar com clareza e precisão qual seria os rumos que o partido iria tomar numa futura vitória eleitoral.

Assim, acreditávamos que, apesar da maioria dos núcleos e da linha partidária não ser (e nunca ter sido, na prática) a de voltar-se para a atuação efetivamente popular, ainda sim nossa iniciativa poderia ser um exemplo e até um modelo de ação direta a ser adotado futuramente, numa nova conjuntura política, com Lula e o PT no poder ou não. Contudo, os rumos tomados pelo partido (política de alianças perigosas, reestruturações internas autoritárias, burocratizações, governos municipais frustrantes, etc) rapidamente transformaram essa nossa esperança de ver o partido ser o que um dia se propôs a ser, em algo inócuo. Ou seja, em face aos acontecimentos, acabamos por concluir que o partido, nas atuais circunstâncias, não tinha mais condições de resgatar a direção correta.

Entretanto, ainda dentro desse período de “transição” do partido, que durou alguns anos, conseguimos juntar forças para realizar a primeira parte da nossa proposta com muito afinco, acreditando, com ela, ajudar no resgate de um PT de lutas, desafio que alguns outras pessoas e setores também vinham se dedicando. Decidimos, todos os integrantes do núcleo, nos dividir em duplas para o contato pessoal com os moradores do bairro em suas residências, entregando-os o referido questionário. Foi em torno dessa atividade que ocorreu a já mencionada experiência marcante.

Antes, porém, nas reuniões preparatórias nos persistia a grande dúvida quanto à forma que deveríamos abordar as pessoas. A preocupação se fazia, sobretudo, em relação à resistência e à repulsa que imaginávamos que os moradores teriam à nossa iniciativa e à nossa pessoa caso fôssemos nos apresentar como integrantes do núcleo petista do bairro.

Já era um tempo de grande menosprezo ao assunto de “política”. Além do mais, questionávamos se não haveria da parte das pessoas o entendimento de que estaríamos querendo instrumentalizá-las para os interesses partidários, como comumente fazem os que costumam visitar as pessoas em suas casas (integrantes de seitas religiosas, vendedores, etc).

Apesar de toda essa preocupação de fundo, que em um determinado momento suscitou-nos a alternativa de sequer nos colocarmos como integrantes de um núcleo partidário - alternativa essa que foi a seguir descartada -, decidimos, por fim, encarar o desafio partindo para as ruas, com o que chamam de “a cara e a coragem”.

Cada dupla ficou responsável por determinadas ruas do bairro. A tática era bater, de casa em casa, informando que éramos do núcleo do PT e que estávamos realizando uma pesquisa com os moradores visando conhecer a sua opinião sobre os problemas do local, para chamá-los, a seguir, à mobilização visando a solução. O objetivo era deixar o questionário no sábado para voltarmos no dia seguinte a fim de recolhê-lo. Solicitávamos que o mesmo fosse preenchido pelo morador responsável da residência.

Essa pequena experiência foi surpreendente em diversos aspectos. Num primeiro aspecto, porque pudemos constatar - alguns de nós moradores há décadas no local - a existência de inúmeros cantos, vielas, aglomerados, cortiços, quartos com banheiro coletivo escondidos dentro do bairro até então por nós ignorados.

A idéia normal que todos temos dos bairros populares do subúrbio é que são formados de casas, ainda que modestas, beirando as calçadas das ruas. Dificilmente consegue-se visualizar o conjunto de famílias que vivem atrás das fachadas, dos muros, em condições precaríssimas obrigadas ao confinamento. São residências antigas, normalmente dos pais de filhos e/ou filhas que se casam e, porque não podem ter casa própria, acabam construindo cômodos e puxando para o interior das mesmos novos integrantes (esposa(os) do(as) filho(as), netos, cunhados, etc), reunindo, muitas vezes, dezenas de pessoas acomodadas (e incomodadas!) dentro de espaços que foram inicialmente projetados para um família de, no máximo, 4 ou 5 pessoas. Essa foi, na ocasião, a nossa constatação: que o número de moradores em residências consideradas “favelas”, “cortiços”, etc. na verdade é muito maior do que a estatística oficial do governo porque esta não consegue muitas vezes chegar a esses cantos escondidos.

O outro aspecto muito marcante dessa experiência foi a oportunidade de desconstruirmos completamente as nossas avaliações políticas sobre os moradores, os ditos “cidadãos comuns”. Como dito, fomos às suas casas, ou mais precisamente, às suas residências, aguardando uma receptividade, no mínimo, fria, ao acharmos que a maioria estaria ali mergulhada nos seus afazeres domésticos acumulados durante a semana e não teria o interesse, seja por falta de tempo, seja por falta de consciência política, de nos receber. Para piorar a nossa expectativa, estava o nosso vínculo com a questão político-partidária, de modo que esperávamos até mesmo agressividade e desaforos de alguns mais exaltados.

Mas foi grande a nossa surpresa. Não só nada disso ocorreu como justamente ocorreu o contrário. De um modo geral, a recepção dos moradores, sejam dos homens, mulheres, jovens, idosos e crianças, foi de uma fineza realmente comovedora e surpreendente. E não só da porta para fora. Muitos, inclusive, faziam questão de que entrássemos nas suas residências, expondo a sua privacidade domiciliar, num gesto de grande confiança em nós por conta daquilo que estávamos nos propondo a fazer.

Ao contrário também da sua suposta “alienação política”, descobrimos um grande número de pessoas (estes que as esquerdas intelectuais às vezes chamam de “massa atrasada”) com muita lucidez e indignação em relação aos problemas do bairro, da cidade e do país. E mais. Demonstrando-se às vezes tão dispostos a aprofundarem a nossa proposta política, que nós mesmos tínhamos que pedir licença para nos retirar, caso contrário ficaríamos ali presos por horas no debate.

O fato é que a maioria dos questionários entregues foram preenchidos e devolvidos, com direito, em vários momentos do nosso retorno, à continuação do debate político. As respostas de modo algum foram genéricas ou superficiais. Quase todas apontaram os problemas reais e as medidas concretas necessárias para saneá-los. Infelizmente não tivemos como dar continuidade à iniciativa pois o núcleo carecia de mais pessoas e sobretudo faltou um projeto coletivo para dar uma maior organicidade àquela ótima proposta. O PT, definitivamente, estava seguindo em outra direção.

Essa experiência política direta com o povo que vivemos por diversos fins-de-semana no bairro de Água Santa e adjacências (fora os meses de preparação e reflexão), não fosse uma realidade vivida e comprovada, certamente seria considerado por muitos, inclusive pelos militantes do PT, como uma ficção, um idealismo, uma utopia, uma irrealidade. Isto porque o povo, historicamente, sempre foi enxergado da forma mais míope e equivocada possível pelas esquerdas no país e no mundo. E é esse um dos motivos por que o PT (e as esquerdas em geral), nas últimas duas décadas, principalmente quando finalmente assumiu o poder central, acabou virando “farinha do mesmo saco” na política, para a decepção nossa e de muitos sonhadores.

Mas o que sempre ficou como legado para a luta das futuras gerações são sempre os bons exemplos do passado. As traições, ao contrário, só são lembradas como tais e nada mais.

Rio de Janeiro, 18 de maio de 2008.

RINALDO MARTINS DE OLIVEIRA

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