quinta-feira, 21 de maio de 2009

COMO PODE TER SURGIDO O MAL NO CORAÇÃO HUMANO

Estudos psicológicos demonstram que já nos segundos iniciais da vida extra-uterina, o bebê sofre a sua primeira grande crise existencial ao se defrontar com uma situação física e psíquica absolutamente estranha e ameaçadora à sua integridade, impondo-lhe uma sensação de impotência que o angustiará para vida inteira. É observável que a forte reação cardíaca do recém-nascido e o seu semblante visivelmente de desespero refletem o seu instinto de auto-defesa no propósito do retorno urgente ao conforto e segurança do útero materno. Obviamente será esta uma tentativa vã pois a vida já lhe exige seguir adiante encarando os primeiros desafios à sobrevivência.

Este profundo mal estar inevitável no começo da vida de cada pessoa resume, na verdade, a história permanentemente tencionada da humanidade. Esta, desde os seus primórdios, tem sofrido, como drama maior seu, o conflito entre o desejo de retroceder ao seu estado originário e a necessidade de prosseguir sempre para um estágio original.

É notório, como bem descreve o intelectual italiano Domenico De Masi, no livro “Criatividade e Grupos Criativos“, que tal tensão intrínseca à existência humana ajudou a alavancar importantes avanços intelectuais e científicos libertadores na história da humanidade. Não obstante, o referido impasse existencial, a meu ver, também suscitou todas as neuroses humanas que, principalmente, se têm consolidado, no decorrer dos últimos milênios, em mega-sistemas de poder como o escravismo, o feudalismo, o absolutismo, o capitalismo, o fascismo e o totalitarismo.

Avalio que esta doença coletiva (a denominada “peste emocional”, por Wilhelm Reich) veio surgir no nosso meio no determinado momento em que o ser humano, descobrindo-se constituído de racionalidade e vislumbrando a capacidade de impor-se frente à natureza e de alterar o curso da sua história, imaginou, de pouco a pouco, ser também viável pôr fim à dor desta tensão primeva (desejo x necessidade), desenvolvendo o maior dos seus artifícios psicológicos: A IDÉIA DO PRESENTE COMO PARTE INTEGRANTE DO TEMPO.

A idéia do momento em que vivemos (o nosso quando existencial), como uma “instância temporal” ou um “período de tempo” entre o passado e o futuro, sendo enraizada na mente humana no decorrer de dezenas de milhares de anos, tornou-se, por fim, um dos tantos arquétipos construídos no inconsciente coletivo que traduzem o processo de significação do homem em relação à sua própria existência.

O poder específico deste arquétipo é o de neutralizar (na mente humana), atando ao presente, estas duas maiores forças existentes no interior humano, contrárias entre si e em permanente conflito: a força que puxa-nos para trás na direção do passado, das nossas ancestralidades, da nossa origem e a força que nos empurra para frente, no sentido do futuro, do desconhecido, do original, do ideal perfeito.

Analogicamente, concebemos desde então, o presente como uma flecha em movimento (regressivo, progressivo ou estático, retilíneo ou curvilíneo, dependendo do ponto de vista de cada um e das culturas) lançada por Deus ou pela natureza, acreditando-se que ele (o presente) “existe”, desde sempre, independentemente da nossa vontade e da nossa existência, sendo ao homem atribuída a nobre tarefa e o desafio de “encaixar-se”, ou melhor, intrometer-se neste “período temporal” e controlá-lo absolutamente.

Deste jeito, o entendimento do presente como uma faixa de tempo passível de manipulação pelo animal chamado Homem, permitiu, paralelamente, a idéia de que o passado e o futuro também, obviamente, pudessem ser controlados a partir dos esforços e recursos desenvolvidos, no decorrer da história, voltados para “esticarmos” o presente, cada vez mais, para trás e para frente, como que visando invadir o passado e o futuro.

Na direção do passado, o desafio tem sido o de preservá-lo vivo, utilizando-se desde recursos religiosos e espirituais da evocação dos entes ancestrais e antepassados até a alta tecnologia da gravação sensitiva (sonora e visual, sobretudo). As próprias ciências humanas e exatas também estão imbuídas da idéia central metodológica de interpretar os fatos sempre identificando em seus matizes supostas “sobrevivências” ou “continuidades” de fatos ocorridos anteriormente .

Na direção do futuro, a obsessão é o de antecipá-lo cada vez mais. Daí, por exemplo, a alucinada corrida tecnológica que transforma produtos recém-criados em objetos já automaticamente ultrapassados e até obsoletos. O próprio crescimento do corpo vivo, animal e vegetal, também, cada vez mais, é induzido à rápida evolução. Vide o fenômeno do gigantismo das frutas, legumes e verduras provocados por fertilizantes. Também os animais recém-nascidos violentamente engordados e, após apenas alguns dias, “prontos” para o abate. Além do aumento considerável, no século XX, da média da estatura do corpo humano adolescente, a nível mundial (sobretudo nos países industrializados), o que sugere um procedimento orgânico correspondente à pressão (cultural e econômica) para a rápida “adultização” do jovem, numa perspectiva estritamente voltada para a sua sempre mais precoce inclusão no mundo do mercado de trabalho.

Vem sendo assim consolidado o sutil artifício psicológico cujo propósito é a tentativa do domínio e controle total do passado e do futuro, elevando os homens à condição de deuses, tal como o herói do filme holiwodiano que muda o sentido da rotação da Terra para voltar o tempo e salvar a amada da morte ocorrida no passado.

Deste artifício da mente humana seguirá o anestesiamento da dor da tensão maior provocada pelo conflito entre as duas dimensões da existência e da história humana: passado e futuro. E a sensação da paz intra-uterina pode, enfim, reinar neste mundo, tornando-o um “Admirável Mundo Novo” conciliado, sem impasses e sem conflitos existenciais onde lobo e cordeiro poderão viver em plena harmonia.

Nasce, entretanto, proveniente desta paz fantasiosa, a neurose coletiva que inaugura em todos os níveis do psiquê dos indivíduos - com extensão aos povos e às sociedades - a legitimidade para que cada um possa criar o seu próprio mundo particular sem e contra quaisquer limites, inclusive éticos, que lhe possam impedir de usufruir e alcançar os prazeres desse “paraíso resgatado”.

Os impulsos internos do organismo humano envolto à tal sensação de “total liberdade” advinda do subconsciente e do inconsciente tendem a sobrepor-se a quaisquer regras (consideradas obstáculos) da convivência social. Pois se o limite do tempo - o maior de todos e que tanto provocou o mal estar à humanidade - foi e está sendo vertiginosamente superado, é legítimo que todo e qualquer outro limite, de qual ordem for, venha a ser relativizado.

Para o homem em geral, superar, a todo custo, suas próprias limitações (não tanto aprender a conviver sadiamente com elas), tornou-se já de muitos milênios o seu objetivo máximo de vida, a sua obsessão. Dentro desta filosofia todos os recursos valem ser utilizados para que tal propósito seja alcançado.

A Bíblia, no livro dos Gênesis, fabulosamente relata a origem da grande queda do Homem: este convenceu-se, pela serpente, ser tão poderoso quanto Deus. Ou seja, convenceu-se que tudo pode - ferir e matar inclusive, como fez Caim - para garantir o seu direito de prosseguir na direção à ruptura de todos os seus limites. Na linguagem bíblica: para ter acesso ao pleno Conhecimento do Bem e do Mal.


OUTUBRO DE 2007.

RINALDO MARTINS DE OLIVEIRA

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