quarta-feira, 20 de maio de 2009

O VIDRO PRETO E A COVARDIA DA CLASSE MÉDIA

A morte da criança João Roberto, no dia 06 de julho último, foi terrível, mas não pode ser analisada superficialmente, como a mídia o fez, como apenas mais um caso de despreparo e negligência dos agentes da polícia fluminense.

Se por um lado foi um ato absurdo e truculento do PM que crivou de balas um veículo cujos passageiros não podiam ser identificados, por outro lado é estúpida a prática do uso do insufilme nos vidros do carro, objeto que acabou por favorecer o “equívoco” do policial.

Os cidadãos de posses estão aterrorizados. Mas transformar o carro em um tanque blindado, com vidros a prova de balas e lataria revestida de aço, ainda é “privilégio” de poucos. A alternativa encontrada pela grande maioria da classe média residente nas cidades grandes, pelo menos para inibir psicologicamente o seu pânico generalizado, tem sido mesmo a “blindagem visual”.

Entretanto, o vidro preto - fica cada vez mais provado - não só não protege os passageiros, como traz mais riscos de morte, mais violência no trânsito, ou seja, mais tragédias como a recém-ocorrida e outras que já ocorreram, quase sempre com vítimas infantis. Produz justamente aquilo que seus usuários desesperadamente tentam evitar.

Em primeiro lugar, com o insulfilme os carros transformaram-se em verdadeiros muros ambulantes. Ao dirigir, aprendi a observar através dos vidros dos carros à minha frente e ao meu lado. Com isso, pude evitar acidentes. Hoje, tal prática se tornou impossível, por causa dos vidros pretos.

Em segundo lugar, os abusos no trânsito multiplicaram-se porque o motorista negligente sabe que agora não pode ser identificado ou sofrer constrangimento externo pelos seus atos irresponsáveis.

Em terceiro lugar, os vidros escuros também dificultam a visualização do próprio motorista. Recentemente peguei um táxi com vidros pretos de último grau e o taxista, interpelado por mim, confessou que, à noite, não via através do seu vidro traseiro e precisava mesmo abrir as janelas laterais para poder enxergar os retrovisores...

Em quarto lugar, os vidros pretos transformaram os carros em verdadeiros ambientes privados. Na prática, isto induz os motoristas e passageiros a sentirem-se como se estivessem em casa podendo praticar suas próprias regras de comportamento. Aliás, o interior dos carros mais modernos já possuem os principais recursos existentes em um lar. Uma comparação real: o carro transformou-se numa espécie de quarto em alta velocidade!

Por fim, o insulfilme nos carros acabou por facilitar ainda mais todo o tipo de transporte ilícito e criminoso, inclusive, seqüestros. Até mesmo as facilidades da morte por encomenda que, antes, exigia do assassino um maior cuidado e discrição para não ser descoberto.

O Estado, pressionado pelo forte sentimento coletivo de medo, mesmo sabedor do aumento dos riscos de acidentes no trânsito e de situações criminosas causadas e/ou favorecidas pelo vidro preto, lavou as mãos para esse problema tão sério.

O vidro preto nos carros é o reflexo exato da covardia da classe média que não quer encarar o problema social como deve ser feito: sem subterfúgios, com “vidro transparente”, no sentido figurado do termo.

A verdade é que a adoção, em massa, do vidro preto nos últimos anos, representa mais do que uma mera opção individual movida por critérios subjetivos: representa um dos tantos comportamentos-padrão da classe pequeno-burguesa que vêm corroborar com toda a política de segregação econômica, espacial, social e cultural imposta pelas elites burguesas, há séculos.

A classe média, em vez de reagir contra as causas da pobreza e da miséria - o que poderia e deveria fazer por uma questão até de interesse próprio já que também acaba por se tornar vítima de tal situação social –, prefere recorrer a artifícios individualistas, não porque isso lhe seja tão eficaz (os fatos demonstram não ser), mas porque não quer abrir mão dos valores da classe rica, os quais considera como seu paradigma, ou referência existencial.
Mas há uma realidade bem diferenciada entre o rico e a classe média. O rico sequer vê o pobre. Seus mundos são tão distantes que ambos nunca se encontram, salvo em situações excepcionalíssimas ainda sim absolutamente seguras para o primeiro.

Já a classe média não pode, ainda que o queira, viver tão afastada da classe pobre. Precisa se locomover para o trabalho e dentro dos seus carros precisa, aqui e ali, se deparar com o “incômodo” de crianças, adolescentes e adultos nas esquinas ou sinais das vias expressas, pedindo dinheiro ou vendendo balas.

O vidro preto serve para dar uma sensação de afastamento “dessa gente”. Contudo, além de ser esse um sentimento movido por uma visão preconceituosa e fascista, é uma posição extremamente burra. Pois o que supostamente surgiu como um meio de segurança e privacidade, na verdade, faz-se objetivamente mais um instrumento agravante do caos e da violência urbana.

E de medo em medo, tragédia em tragédia, a classe média vai se afundando em seus próprios desejos ilusórios e falsos artifícios.

Rio de Janeiro, agosto de 2008.

Rinaldo Martins de Oliveira (sociólogo)

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