quarta-feira, 20 de maio de 2009

documentário: ESTAMIRA

ESTAMIRA: PEDRA PRECIOSA EM MEIO AO LIXO

O título desta crônica, em primeiro lugar, refere-se à excelência do documentário intitulado Estamira de Marcos Prado, obra-prima que estreou lamentavelmente apenas em algumas poucas salas cariocas, em julho de 2006, soterrada pelo lixo que o cinema holliwoodiano costuma produzir e descarregar aqui em grande quantidade sobretudo nesse mês de férias escolares.

A outra referência do título é à própria protagonista do filme, Estamira, uma senhora de 63 anos, esquizofrênica, que sobrevive da coleta de lixo no aterro sanitário de Jardim Gramacho, na Baixada Fluminense.

Estamira foi descoberta por Marcos Prado numa tiragem de fotos no lixão de Gramacho. Sua personalidade tão forte e complexa acabou por convencê-lo a registrá-la em película, o que resultou em 130 minutos de um filme - um tempo relativamente longo para um documentário - que se desenvolve, entretanto, com ótima dinâmica e leveza. Isto ocorre na exata medida em que a personagem, com sua capacidade de eloqüência, vai expondo, de forma apurada, as suas idéias e filosofias cósmicas sobre o seu papel profético na Terra.

Reelaborando diversas imagens e conceitos, Estamira cria uma significação própria e complexa do mundo e da sua dura realidade pessoal e social. Ela - que sempre chama a si mesma pelo próprio nome – coloca-se num patamar astral superior e, deste modo, constrói uma verdadeira fortaleza interna que a torna irremovível em suas convicções, o que a faz “transbordar” (termo usado por ela) de autenticidade e clareza em seus propósitos.
Mediante a firme certeza de que tem uma missão a cumprir, assume para si a tarefa de anunciar a verdade (bem, justiça, lealdade) e de denunciar e derrotar a mentira (mal, injustiça, hipocrisia, traição). Porém, ao contrário do que se possa imaginar, verdade e mentira, para Estamira, não se codificam como conceitos religiosos clássicos. Deus, para ela, é um ser maligno (chama-o de assassino), sendo ele o agente central da sua repugnância. A mera citação desse nome por seus filhos e netos a faz, automaticamente, entrar em surto psicótico. (Curiosamente suas alegações críticas a respeito da figura de Deus guardam semelhanças com às de Nietszche. Pela realidade de miséria e doença em que viveu por toda a vida, é improvável que ela já tenha ouvido falar nesse filósofo).

Estamira, imbuída dessa convicção profética, consegue, realmente de forma muito misteriosa, transformar sua doença e sua miséria (que normalmente acuariam qualquer um a uma vida absolutamente derrotada e passiva, como pessoas em situação semelhante são mostradas no filme) em instrumentos a serviço da sua batalha astral. Isto lhe capacita adquirir um grau de lucidez e indignação sobre sua própria doença, sua família, sobre a injustiça social, absolutamente surpreendente. Preserva também uma ternura e sinceridade para com os seus amigos de cruz raramente encontradas na sociedade dita cristã, individualista, opulenta e saciada de bens materiais.

O documentário promove com maestria a desconstrução de uma série de valores e pré-conceitos arraigados no ideário de todas as classes sociais e pessoas. A começar, o doente mental, comumente discriminado como ser inferior no aspecto da criação do raciocínio lógico. No filme, Estamira, que sofre de esquizofrenia aguda, impõe-se como uma excepcional formuladora de idéias e filosofias a partir da leitura da sua própria experiência cotidiana na vida, característica padrão entre os grandes pensadores da humanidade.

A idéia de miséria, como suposto estado de definhamento total humano, também é desconstruída. Em meio a mais repugnante situação de sobrevivência física cotidiana – aquela em que pessoas chegam a disputar com animais e insetos restos de comida, como é retratado no filme – há o cultivo da solidariedade, da amizade e da ternura que, nessa situação, fazem fortalecer os espíritos como a nenhum outro ser humano seria possível.

Estamira, documentário de Marcos Prado, é o que a nossa produção nacional melhor tem a oferecer à nossa população e à humanidade. Merece não só ser visto bem como ser refletido por todos aqueles que sabem que há tantas Estamiras espalhadas pelo país e pelo mundo, massacradas mas humaníssimas, a espera de serem reconhecidas em seu valor e em suas virtudes, por vezes, revolucionárias.

RIO DE JANEIRO, julho de 2006.


RINALDO MARTINS DE OLIVEIRA

Nota posterior do autor: neste ano de 2008 o filme já se encontra em DVD nas locadoras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário