quinta-feira, 21 de maio de 2009

O MUNDO PARALELO DE ELOÁ E LINDEMBERG

O seqüestro da adolescente Eloá, de 15 anos, pelo seu ex-namorado Lindemberg, 22 anos, ocorrido no último dia 17 de outubro, que durou cerca de três dias e culminou no assassinato da primeira, não pode ser reduzido, como mais uma vez faz a mídia, a um mero caso de crime passional como tantos outros já ocorridos.

Há um detalhe curioso e muito significativo, relatado pelos outros jovens que estavam no apartamento de Eloá quando Lindemberg entrou: que o mesmo, assim que chegou, atirou no computador de Eloá através do qual ela mantinha correspondência com um outro possível namorado ou pretendente.

A princípio, esse foi uma mera impulsão emotiva do jovem para expressar à ex-namorada sua raiva e ciúme pelo novo caso amoroso em andamento. Ou seja, uma reação facilmente explicável pela psicologia.

Não obstante, se formos observar mais de perto a situação talvez cheguemos à conclusão que mais provável do que um simples gesto simbólico visando expressar um sentimento, o ato representou um verdadeiro ódio à própria máquina. Pois, uma coisa seria um eventual arremesso do equipamento ao chão, com o propósito de chamar atenção e levar os presentes à conclusão sobre a real motivação do feito. Outra coisa foi o jovem ter disparado um tiro, sabedor de todas as conseqüências dessa iniciativa (o que, de fato, deu curso a toda a crise posterior). Isso mais pareceu uma atitude premeditada, com um objetivo nada oculto ou metafórico: realmente destruir aquilo que seria fator da sua infelicidade e desespero.

Conforme os amigos e amigas de Eloá relataram à polícia, o casal pouco saía para passear. Encontravam-se e ficavam quase sempre dentro da casa da própria jovem. Não é preciso, portanto, o esforço de imaginar que o computador provavelmente viesse a ser praticamente o único meio através do qual mantinham a sua inter-relação. Em outras palavras, em torno do mundo virtual o casal construía a sua identidade.

Se formos analisar a realidade atual da juventude, particularmente da juventude urbana de classe popular e média baixa, como a do casal em referência, poderemos traçar um padrão: a falta de condições econômicas impedindo basicamente o acesso aos recursos culturais mais amplos, acabando por confinar os jovens a uma vida extremamente limitada no que se refere ao exercício e desenvolvimento das suas dimensões humanas e personalidade.

Em tais circunstâncias, a experiência desses jovens tende a centrar-se nos valores propagados pelos veículos da alta mídia burguesa. O objetivo claro desses é controlar os comportamentos das massas através da massificação de uma dita “realidade virtual” (constituída por falsos valores e modelos existenciais) que, de tanto repetida e disseminada, entronizada sobretudo na fértil (e ainda em formação) mente dos adolescentes e jovens, acaba por se tornar uma realidade, digamos assim, mais “real” do que a realidade concreta que é aquela caracterizada pelos problemas e conseqüentes desafios que as pessoas vivem no seu dia-a-dia.

No caso em questão, é provável que o mundo existencial de Eloá e Lindemberg viesse a ser o mesmo da maioria dos jovens do meio popular de hoje, ou seja, restrito e centrado na dimensão do privado, da vida particular. Não por uma motivação conscientemente individualista (como ocorre normalmente nas classes altas), mas justamente por sua realidade sócio-econômica representar uma situação descolada da perspectiva social coletiva que o sociólogo Emile Durkheim denominou de “solidariedade orgânica”.

Este conceito, em resumo, representa o mecanismo que promoveria a dinâmica da sociedade complexa (industrial) como resultado da relação e combinação de interesses entre os indivíduos que a compõem. Conforme entende o sociólogo, tal processo ocorreria concretamente com a troca de serviços e bens entre as partes envolvidas. Estas, movidas por interesses próprios, visando obter algo, deveriam oferecer a outrem algo de seu interesse e assim sucessivamente. Nisso, proporcionariam um estado de solidariedade coletiva, garantindo e viabilizando a convivência social civilizada e a evolução progressiva estrutural das sociedades.

Contudo haveria aqueles que, ainda sim, não teriam ocasionalmente nada a oferecer ficando, por isso, simplesmente de fora desse processo, fazendo-se como que um ser estranho ao mecanismo social. Para o sociólogo isso seria considerado uma deficiência (que foi denominada por ele como “anomia”) desse organismo social e que, por isso, poderia ser remediada e reparada sobretudo com medidas apropriadas de inclusão no sistema.

Independentemente de se defender ou não essa visão positivista, trata-se de constatar o fato concreto de que a referida situação de nada-ter-a-oferecer (o que dentro da visão marxista de sociedade é entendido como uma situação de exclusão do processo produtivo do sistema capitalista) leva sempre ao estado de confinamento, que se exprime de várias formas possíveis. Este, dependendo da conjuntura, pode até ensejar um processo radical de ruptura do sistema excludente. De outra forma, quando encampado às últimas conseqüências de modo isolado, como por vezes é o caso, pode provocar o autismo egóico crônico (conceito psicanalítico cunhado por Lacan) cujo resultado final é uma situação radical de “auto-violência” como o caso ocorrido em questão.

Ainda recorrendo a Durkheim, o autor analisando as “anomias” surgidas dentro dos mecanismos auto-regulatórios das sociedades complexas, estudou cientificamente a questão do suicídio, concluindo que o mesmo, ao contrário do que, a princípio, possa parecer, não seria movido por fatores exclusivamente subjetivos ou pessoais, mas sim, sobretudo, por questões de ordem estritamente social.

Em poucas palavras, o suicida, ainda que estivesse convencido do contrário, praticaria seu ato movido por fatores externos, sociais. Ou seja, seu ato seria resposta a uma situação limite de isolamento seu do conjunto da sociedade que pertence.

Minha tese é que o assassinato de Eloá, cometido pelo seu ex-namorado Lindemberg, se aplica às mesmas especulações expostas por Durkheim, pelo menos no aspecto dos efeitos psicológicos causados pelo isolamento da sociedade. A exclusão em que os jovens do meio popular hoje sofrem na sociedade capitalista – sobretudo aquela dos bens culturais que poderiam equipar-lhes de referenciais existenciais mais amplos e profundos – acaba por obrigá-los, no lugar do suicídio clássico, a ter de construir um mundo paralelo ao mundo real (ou ao mundo social coletivo). Nesse “mundo paralelo” vigoram regras e comportamentos que se exercem em alheamento (mais do que em oposição) absoluto aos valores autenticamente humanos, mas que nem por isso deixam de dar algum significado imediato às suas vidas, mesmo que resultem em situações trágicas.

Portanto, no assassinato de Eloá há algo muito mais complexo que a abordagem feita pela mídia burguesa resumindo-se por apontar suposta negligência do comando policial na condução e desfecho do caso como se tal tipo de problema pudesse ser resolvido com atos dessa espécie.
Outubro/2008.
Rinaldo Martins de Oliveira
É sociólogo.

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