quinta-feira, 21 de maio de 2009

A QUESTÃO DO POBRE E A POLÊMICA ENTRE OS IRMÃOS BOFF

A origem da polêmica.

Nos anos de 2007 e 2008, pela primeira vez na história da Teologia da Libertação (TdL), dois dos mais importantes teólogos dessa corrente, Clodovis Boff e Leonardo Boff (irmãos de sangue), vieram a público explicitar profundas discordâncias entre si acerca da questão do pobre dentro da perspectiva cristã. Esse é o tema principal e fundante da teologia cuja sistematização ambos os teólogos foram os maiores responsáveis no país e também na América Latina.

A polêmica surgiu a partir de um texto publicado por Clodovis na revista REB, em set/2007, e republicada na revista virtual Adital em 16.06.08, intitulado “Teologia da Libertação e volta ao fundamento”. Ali o autor critica a TdL dizendo que, apesar de ter iniciado bem, ela, por sua ambigüidade epistemológica, acabara por colocar o pobre no lugar de Cristo. Deste modo, a fé cristã estaria sendo reduzida à questão da libertação dos pobres, tendendo a ser instrumentalizada como uma mera ideologia política, quando o que daria realmente a direção da fé cristã seria a fé apostólica transmitida pela Igreja.

Nesse texto, Clodovis posiciona-se explicitamente a favor da notificação do Vaticano contra o teólogo Salvadorenho Jon Sobrino (outro iminente teólogo da libertação), justamente porque esse estaria defendendo explicitamente tal interpretação cristológica que, para a opinião daquele, seria não só um grave desvio da fé como também provocaria a destruição da própria TdL.

Por conta dessa citação crítica a Jon Sobrino, Leonardo Boff decidiu retrucar duramente seu irmão. Publicou em 27.05.08, o artigo “Pelos pobres contra a estreiteza do método”, no site Unisinos, afirmando que a posição de Clodovis, além de ser irresponsável por ajudar a suscitar a reinvestida dos setores conservadores do Vaticano contra a TdL, e ser pastoralmente danosa, estaria sobretudo absolutamente equivocada, sofrendo de insuficiências teóricas e teológicas.

Leonardo Boff rebate a tese do irmão como sendo uma teologia aristotélica e escolástica que é rigorosa nos seus métodos mas formalista, não sendo capaz de dar respostas aos desafios que os pobres representam para o pensamento e para a prática cristã.

Minha avaliação sobre o assunto.

a) Substituição de Jesus pelo pobre?

Li e reli o livro de Jon Sobrino, “A Fé em Jesus Cristo”, que ensejou a referida notificação do Vaticano, a qual Clodovis faz menção. Não vi, em nenhum momento, que o autor tenha direta ou indiretamente, explícita ou sutilmente, sugerido substituir Jesus, tão pouco a fé apostólica, pelos pobres (o que ele preferiu denominar de vítimas) na construção da fé e no método teológico.

O que o autor afirma, categoricamente, nesse aspecto (dentre outras questões que analisa), é o mesmo que a TdL e a própria Igreja desde o início vem explicitamente propagando: Deus se revelou aos homens através de Jesus, mas não de um Jesus descolado da realidade humana, “metafísico”, e sim de um Jesus inserido no contexto histórico do seu tempo. Um Jesus que revela o Pai e cumpre a missão transmitida pelo Pai a partir da realidade e da perspectiva dos pobres.

Portanto, a centralidade da fé, para Jon Sobrino, como para todos os principais teólogos da libertação que tenho lido há décadas (inclusive o próprio Clodovis Boff), não estaria obviamente na figura, em si, dos pobres mas na do próprio Jesus Cristo retratado objetivamente pelos Evangelhos: um Jesus que faz uma opção tão clara e radical pelos pobres que deixa evidente que não há como chegar a Deus sem estes e vice-versa.

b) Substituição da salvação do pecado pela libertação dos pobres?

A controvérsia criada por Clodovis Boff está que o mesmo, no seu texto, afirma que o perigo para a fé cristã e o erro fatal da TdL reside no método epistemológico, por ela adotado, de interpretação dos Evangelhos, colocando, na sua prática teórica, a questão da libertação (dos pobres) em substituição da questão da salvação (da humanidade). Para ele, isso representa uma séria inversão do primado teológico, um entendimento gravemente equivocado da revelação de Deus aos homens e seu projeto para a humanidade.

Na sua análise, o pobre ainda que possa e deva ser, dentro da teologia, um princípio no aspecto do “começo de conversa” ou “ponto de partida”, deve ser uma “prioridade segunda” ou “prioridade relativa”, conforme suas palavras.

Na minha avaliação, Clodovis quando se centra no enfoque do pobre dado pela TdL para sustentar a sua crítica a ela, evita afirmar explicitamente o que deu a entender nas estrelinhas, ou seja, que o projeto de Deus, através do envio do seu Filho Jesus ao mundo, seria, em primeiro lugar, o da salvação de toda humanidade, do pecado original, e que a libertação dos pobres seria apenas um processo - ainda que para o autor considerado extremamente prioritário - dentro do projeto salvífico de Deus.

Exceto o grau de relativa prioridade que Clodovis atribui ao pobre - tese que sequer é aceita pela teologia dominante católica – o resto que defende é a exata interpretação teológica que a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Santo Ofício), na época em que Joseph Ratzinger (o atual Papa Bento XVI) a comandava, defendeu em seu documento crítico à TdL intitulado “Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação”, publicado em 06/08/84. No que se conclui que quando Clodovis faz defesa à notificação romana contra Jon Sobrino, na verdade quer também fazê-la em relação ao documento da Congregação, pois aquela é apenas uma ratificação desse.
c) O lugar do pobre no Projeto de Deus.

Por isso, creio que o ponto principal da discussão levantada por Clodovis Boff não esteja na questão da substituição de Jesus pelo pobre, conforme exposta por ele e rebatida por Leonardo Boff, mas justamente nesta última questão teológica de fundo não tratada nos dois textos em conflito.

Trata-se, esta sim, de uma divergência clara da tese especificamente defendida por Jon Sobrino e que, de fato, não encontramos explicitada nos escritos dos demais teólogos da libertação, inclusive de Leonardo Boff (entretanto, sem haver contradição hermenêutica desses escritos com a tese mais ousada de Jon Sobrino, conforme explicada a seguir).

Para Jon Sobrino, Deus, na pessoa e missão de Jesus Cristo, se faz revelar através dos pobres, ou mais profundamente, das vítimas, não por uma opção aleatória, mas porque os tem no centro do seu projeto a partir do qual toda a humanidade pode ser salva.

O lugar das vítimas, na concepção do referido teólogo, não é apenas um lugar, ainda que o mais privilegiado, de encontro com o Senhor. É o lugar, por excelência, em que Deus e Jesus podem ser encontrados e a partir do qual vão ao encontro de toda a humanidade. Todos os demais lugares em que esse encontro humanidade-Deus possa ocorrer, ainda que existam e sejam importantes, são secundários, devendo passar primeiro e necessariamente por aquele.

d) A dinâmica do Projeto de Deus em Jon Sobrino.

Parece-me, portanto, que está realmente na questão do método epistemológico, como dito por Clodovis e Leonardo Boff, a divergência de fundo entre eles. Mas não na questão do pobre, como princípio ou não para a teologia da Libertação ou para a fé cristã, como abordam, e sim na análise de como se processa a dinâmica do Projeto de Deus.

Essa divergência de fundo em nada se confunde, como quer apontar Clodovis, como reflexo de uma suposta ambiguidade na compreensão de qual seja, afinal, o centro da fé. Muito claramente, para todos os teólogos (sejam ou não da Libertação) está em Jesus Cristo (em que pese aqui as diversas diferenças e divergências de interpretação cristológica que existem nesse meio) o fundamento da fé cristã.

O que Jon Sobrino afirma no seu livro citado, é que somente agora, nas últimas décadas, a teologia começa a se debruçar na questão específica, mas fundamental, da dinâmica da salvação/libertação encontrada na pessoa e na missão de Jesus Cristo e que sua tese em nenhum momento fere ou diverge dos princípios consolidados da fé cristã transmitidos pela Igreja.

O autor analisa a dinâmica da salvação/libertação a partir da perspectiva das vítimas dentro de um rigoroso método epistemológico e com amplas fundamentações exegéticas. Contudo, não poderia impedir que seus críticos, na notificação, utilizassem de falsas e infundadas argumentações contrárias à sua teoria, inventando que ele estaria defendendo “intrinsecamente” pressupostos que provariam o grave desacordo do seu conteúdo teológico com a verdade revelada pela Igreja.

A questão que Jon Sobrino defende, para além da tese que expõe, e que verdadeiramente incomodou o Vaticano, é que não há fundamentação ainda consolidada no meio eclesial e teológico que possa refutar sua interpretação da dinâmica do Projeto de Deus para da humanidade. A salvação da humanidade, na sua visão, passa fundamentalmente pela questão da libertação dos pobres, ou mais amplamente, das vítimas da opressão do poder. Mais ainda, é condicionada por essa libertação, ainda que não se esgote nela.

e) A legitimidade do método epistemológico de Jon Sobrino.

Na minha avaliação, entendo que está aí a grande divergência de Clodovis Boff, ainda que não explicitado no seu texto. Nesse sentido, para além de uma discordância que eu possa ter da sua abordagem, que faz uma falsa dicotomia entre Jesus e o pobre, também incluo uma denúncia de traição à causa do pobre. Pois independentemente de que se aceite ou não a tese de Jon Sobrino, conforme acima resumida, não se pode colocar que ela sofra de legitimidade, como conclui de forma irresponsável a notificação romana.

Essa o faz e pune severamente Jon Sobrino, no fundo, não por motivos de suposta deturpação das verdades da fé, mas porque a tese do teólogo, na prática, desmonta a interpretação oficiosa dos ditos “Doutores da Lei” da Igreja que há séculos e séculos - para falar a verdade, desde quase toda a história da Igreja – tenta minimizar, secundarizar, relativizar, por fim, descolar do Projeto de Deus a questão do pobre, das vítimas crucificadas pelas estruturas de opressão.

Com esse objetivo, tal interpretação sim é que acaba deturpando a verdadeira centralidade de Jesus Cristo na construção da fé. O cristomonismo que concentra o projeto da salvação exclusivamente na figura de Cristo e reduz ou mesmo anula o papel e missão singular do Espírito Santo nesse mesmo projeto de Deus, tem um propósito claro de suprimir o Povo de Deus como o executor desse Projeto Divino. Isto é o que sempre representou o verdadeiro perigo para a fé cristã.

f) A legitimidade da fé no pobre como fé antropológica.

Na análise bem fundamentada de outro iminente e saudoso teólogo da Libertação, o uruguaio Juan Luis Segundo, em torno do que ele chamou de “fé antropológica”, na verdade, mesmo a centralidade da fé no pobre como fonte legitimadora de uma práxis libertadora – o que definitivamente nunca foi uma tendência epistemológica na teoria da TdL ou de nenhuma das TdL que supostamente existam, na concepção de Clodovis e da Congregação romana - não representaria, em si mesma, um desvio do correto entendimento do projeto de Deus de salvação/libertação.

Acontece que a fé antropológica, no entendimento do referido teólogo, é uma dimensão compartilhada por todos e cada homem e se diferencia da fé religiosa não em sua natureza e essência (daí porque, para ele, ambas são tidas como fé) mas apenas no modo específico e próprio como cada uma se origina e como exprime a mesma impulsão interna que é aquela voltada para a contínua superação das limitações que vivemos em nossa existência, em direção a um “estado ideal”, um “fim último”, “perfeição”, etc.

Por isso também que essa fé antropológica não se confunde com ideologia. Quando se busca na razão teologal o lugar único dos fundamentos que permitem a construção da fé, a tendência é limitar a dimensão da “transcendência” da existência humana aos padrões fechados dos conceitos religiosos, como fizeram os fariseus na época de Jesus e, muitas vezes, fazem os setores dominantes da Igreja.

g) O perigo de rebaixamento do lugar do pobre no projeto de Deus.

Feitos esses esclarecimentos, sigo para um outro aspecto da discussão suscitada pela polêmica entre os irmãos Boff. No meu entendimento, situar o pobre como centro do projeto de Deus, apesar de acertado, pode ser contudo tão perigoso quanto excluí-lo, na medida que se tenha um entendimento equivocado de como o pobre é enxergado por Deus no seu Projeto.

Em poucas palavras, não é suficiente para a TdL colocar o pobre como centro do Projeto de Deus. Mesmo sendo essa tese o que a distingue das demais teologias existentes, ainda sim é preciso ir além nessa perspectiva de análise, o que ainda não aconteceu no conjunto teórico dessa corrente teológica.

A pergunta é: de que maneira o pobre é inserido e qual papel ocupa dentro do Projeto de Deus? Na verdade, essa tem sido uma discussão teológica ainda praticamente inexistente na própria TdL. O motivo dessa ausência pode vir a estar sendo o de encarar o pobre com a mesma lógica fechada como a que comumente as teologias tradicionais abordam Jesus Cristo. Neste aspecto, ainda que não seja essa a preocupação e eixo do seu texto, Clodovis intui uma questão de paradigma que merece atenção.

Lendo as colocações de Leonardo Boff, no seu texto em referência, sobre a relação pobre-Cristo, passa-me a grande impressão de que o pobre é ali tratado mais como um objeto esgotado em si mesmo, um ser estático. Em outras palavras, teria ele o lugar no centro do projeto de Deus simplesmente pela sua condição objetiva de pobreza e nada mais.

O perigo real aqui é o de ordem prática (e, curiosamente, o inverso daquilo que Clodovis se preocupa no seu texto): colocar o pobre num patamar inferior a que foi posto por Deus dentro do Seu projeto. Isto ocorre na medida em que o pobre é visto mais como um fim da realização do Projeto de Deus do que como um meio para essa realização. A forte tendência é sempre a de reduzi-lo a um mero objeto, dentro da equivocada visão, inclusive ainda predominante na doutrina da Igreja, de que o pobre é um ser apequenado, indefeso, carente de direitos, por isso, o que mais necessita de amor.

Acontece que essa interpretação paterno-maternalista do pobre o submete à condição de passividade e dependência de uma “vanguarda” que teria o papel de conduzi-lo à terra prometida, tal como no Antigo Testamento se concebia a intervenção de Deus junto ao Povo de Israel.

Essa, na minha avaliação, é uma formulação equivocada do pobre que sempre predominou na Igreja e fora dela e que hoje se inscreve também no subconsciente de boa parte da militância ligada à TdL e até de muitos de seus formuladores, ainda que obviamente não seja expresso e defendido formalmente.


h) A missão do Povo de Deus é a missão do Espírito Santo.

Por isso, a TdL como toda a Igreja passa hoje pelo mesmo desafio de sempre: enxergar os pobres realmente como os protagonistas das mudanças estruturais que o humanidade haverá de, cedo ou tarde, ter de implementar para que possa sobreviver e continuar seguindo rumo à salvação/libertação total. Em uma palavra: enxergá-lo como Povo de Deus, com toda a profundidade e amplitude que esse termo bíblico carrega consigo.

Para tanto, é necessário que o papel do Espírito Santo seja entendido corretamente. Comumente o Espírito Santo tem sido colocado pela Igreja e pelos cristãos em geral numa condição de mero legitimador de suas próprias verdades e projetos pré-concebidos. Mas tal como Jesus Cristo, o Espírito Santo também tem uma missão própria no Projeto de Deus transmitida pelo Pai. Não é uma missão elaborada pelos homens. Pelo contrário, são os homens que seguem o caminho traçado pelo Espírito. Seguem a Sua missão.

Mas tão pouco são, esses, homens isolados, individualizados ou descontextualizados da realidade concreta em que vivem. Se de um lado, o Espírito Santo atua a partir da livre ação dos homens, não o faz através de qualquer ação humana mas daquela específica em torno de uma práxis libertária dentro da lógica do Projeto de Deus. Essa lógica é aquela exata anunciada por Jesus no Sermão da Montanha. Ali está exposta toda a práxis que reúne os homens em torno da Missão do Espírito. Esses homens reunidos são o Povo de Deus.

Enfim, somente com o entendimento correto e profundo da missão do Espírito Santo é que se pode compreender e aceitar efetivamente a missão dos pobres, que não é outro senão a de estar no centro do projeto de Deus, como Povo de Deus.

Ou seja, O Senhor o quis assim não só para fazer justiça aos injustiçados, mas porque também é através dos pobres, dos vitimados, que o Espírito Santo opera no mundo. Está aí o mais profundo significado da morte e ressurreição de Jesus Cristo e que precisa ser melhor analisado pela Igreja e pela teologia.

Acho que toda essa fundamentação acima sobre os pobres e injustiçados - centro da vinda de Jesus Cristo e centro do Projeto de Deus - está bem clara e resumida no Evangelho de Lucas 4, 18-20: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu; e enviou-me para anunciar a boa nova aos pobres, para sarar os contritos de coração, para anunciar aos cativos a redenção, aos cegos a restauração da vista, para pôr em liberdade os cativos, para publicar o ano da graça do Senhor”.


Rio, 10/02/09.

RINALDO MARTINS DE OLIVEIRA

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