quinta-feira, 21 de maio de 2009

O QUE FAZER DE CONCRETO PARA MUDAR A REALIDADE

Seguem abaixo algumas reflexões que tentarão responder a pergunta do título deste artigo. Como poderá ser observado, não se trata aqui de idealizar fórmulas ou métodos práticos. O desafio maior de todo o processo transformador e de ruptura de estruturas cristalizadas (como o atual sistema capitalista) é o de consolidar PRINCÍPIOS. Por meio do seguimento radical e inflexível destes é que se poderá construir e chegar às condições possíveis para se alcançar tais fins estratégicos. Por outro lado, isso não ocorrerá justamente se no lugar desses princípios maiores, outros elementos sobrepuserem-se, como teremos a oportunidade aqui de avaliar e questionar.

1) TER COMPAIXÃO, PARA ALÉM DA INDIGNAÇÃO.

Em primeiro lugar, só haverá luta real por transformações das estruturas opressoras se nela estiver presente e forte o espírito de compaixão para com a dor dos que sofrem injustiças. Comumente confunde-se compaixão com indignação, mas são valores que, apesar de muitas semelhanças, possuem matizes diferentes. A compaixão tem como objeto sempre os seres e/ou pessoas concretas que estejam sofrendo por conseqüência de injustiças contra elas cometidas em circunstâncias diversas. Já a indignação foca o seu objeto não no injustiçado, mas nas próprias injustiças.

Sabemos que a compaixão sem indignação transforma-se em sentimentalismo e, muitas vezes, em derrotismo. Não obstante, o que estamos propondo aqui é uma reflexão sobre como os homens e mulheres de boa vontade, ou seja, os que já têm algum engajamento sócio-político, devem se posicionar no processo da ação transformadora. A verdade é que, nos meios políticos organizados, a carência maior não é tanto no aspecto da indignação e sim no da compaixão. Tem-se, muitas vezes, avaliação crítica para tudo, calcada numa capacidade de ativação do raciocínio. Falta, contudo, o lado emotivo, afetivo, subjetivo, único capaz de enxergar o povo não como uma massa, e sim como seres humanos concretos e individualizados. Somente assim poder-se-á tê-lo como sujeito da história.

2) SALVAR 1 BILHÃO DE CRIANÇAS DO SOFRIMENTO E DA MORTE.

No meu entender, não há nada mais cruel e terrível, no mundo – por isso sendo realidade a partir do qual todos os homens e mulheres de bem devem concentrar toda a sua energia - do que crianças sofrendo privações dos mínimos recursos necessários para o seu bem-estar e desenvolvimento físico, intelectual, psíquico e afetivo. Isto porque são seres humanos que ainda não têm compreensão das injustiças dos homens e não separam a existência - principalmente a sua própria existência – da realidade concreta em que estão inseridas.

Até uma determinada idade, a criança que costuma passar fome, sede, frio, fraquezas e dores resultantes das doenças provocadas pela sua situação precária, interpreta, no seu foro íntimo, que a vida é isto mesmo: que nasceu para viver deste jeito sofrido. Não tem outra opção senão conformar-se com o seu estado, tal como o cachorro sardento com as suas pulgas e feridas espalhadas pelo corpo a procura de restos nos lixos.

Portanto, o horror da miséria não está só em ver um ser tão pequeno, frágil, inocente e indefeso definhar fisicamente (como nas imagens das crianças raquíticas da África), mas também em saber que a sua subjetividade, sua imaginação criativa, sua alegria espontânea, sua delicadeza, seu impulso e abertura natural para o outro, o seu sentimento de segurança e bem querença, tudo isto está sendo barbaramente violentado, negado. Enfim, que o seu foro mais profundo está sendo atingido da forma a mais devastadora e desumana possível.

Olhando e encarando de frente esta realidade que não é de uma, nem de mil, nem de 1 milhão, mas de, pelo menos, 1 BILHÃO de crianças espalhadas por todo o mundo, principalmente nos países dos chamados terceiro e quarto mundo, é que entendo que nós - homens e mulheres de boa vontade– devemos, chamados pela nossa própria consciência, refletir profundamente se temos, até agora, feito a coisa correta no sentido de realmente combater esta situação de sofrimento e de dor humanamente inimagináveis na qual, sobretudo, as nossas crianças estão submetidas. Essa violência legalizada, institucionalizada, como diz Alceu de Amoroso Lima no livro “Violência ou não?”: “realiza o desfibramento de um povo e o torna ou o conserva apático, submisso, conformado no seu servilismo ou sufocado pelo medo e pela necessidade de sobrevivência”.

3) FAZER A COISA CORRETA.

Esclarecendo melhor, não proponho a reflexão sobre se estamos fazendo alguma coisa. Indago se estamos fazendo a coisa correta. Ou seja, se estamos atuando (isto, se estivermos!) a partir de uma perspectiva de indignação meramente questionadora da realidade, mas sem conseqüências concretas e profundas, ou se estamos atuando a partir de um projeto coletivo realmente voltado, com toda a eficácia e radicalidade necessárias, para atingir e derrubar as bases sustentadoras das estruturas que criam tais injustiças sociais.

A reflexão talvez possa aparentar redundante, pois “fazer algo” pressupõe que se deva ter o conhecimento e a certeza da eficácia e firmeza desse agir, no sentido de alcançar o seu objetivo último: a transformação das estruturas opressoras. Não obstante, na prática, percebe-se que a questão não é tão óbvia assim, pois os meios e os fins quase sempre têm sido, na ação política concreta em geral, entendidos e trabalhados com tamanho grau de independência uns dos outros que, não poucas vezes, tornam-se explicitamente contraditórios e opostos entre si, comprometendo qualquer oportunidade de avanço qualitativo da luta.

Entendo que no agir político, a questão fundamental é saber se os instrumentais gerais que hoje podem servir à causa da luta da libertação popular - instrumentais estes surgidos e construídos a partir de um complexo de fatores ocorridos sempre dentro das relações de poder e da permanente “luta” (ainda que não aberta, explícita e declarada) entre as classes oprimidas e opressoras – estão sendo utilizados pelas pessoas tidas “de boa vontade” e suas eventuais organizações realmente para tal fim, ou têm sido desvirtuados para outros interesses.

4) ATUAR DENTRO MAS NÃO A PARTIR DA ORDEM BURGUESA.

A minha avaliação quanto à inevitabilidade de um confronto direto (armado ou não) com os agentes protetores do poder burguês (as forças militares e para-militares, sobretudo) no processo final de ruptura com a atual estrutura de opressão - o sistema capitalista - continua a mesma. Não obstante, entendo que até antes dessa etapa decisiva há um longo e tortuoso caminho a percorrer de preparação do terreno, dentro da ordem constituída. Contudo, aqui está o centro permanente do problema da atuação política. Para mim, percorrer as etapas dentro da ordem constituída não deve, ou não deveria, se confundir com percorrê-las a partir dessa ordem, adotando-se a sua lógica de poder.

Mas, infelizmente, vejo que é isto que, na prática, tem acontecido. E hoje, praticamente, não há pessoa ou setor que, mesmo dizendo-se de bem (ou “de esquerda”), sobretudo quando constituídos minimamente de instrumentais concretos (mandato representativo, direção de entidades, recursos materiais e humanos, etc) que poderiam estar disponíveis para a luta concreta popular, não tenham caído na tentação de fazer desses instrumentais meios a serviço de suas próprias ambições individuais e/ou de grupo. Assumem, ainda que não se tenha a plena consciência disso (e é bom, para os dominantes, que isto não ocorra), o exato papel político que as elites querem que cumpram para ajudar a manter a situação e a ordem das coisas como estão.

5) TER O POVO COMO PROTAGONISTA DAS AÇÕES POLÍTICAS.

Portanto, a única forma possível para efetivamente se subverter, dentro da ordem constituída (enquanto não se pode romper totalmente com ela), a lógica e as regras do jogo estipuladas pelos poderosos, é ter sempre o povo como protagonista de toda a ação tática e estratégica política, que se venha querer desenvolver (seja qual for e com quais instrumentais se tiver em mãos). Mas povo, aqui, não pode ser aquela instância abstrata como normalmente os movimentos organizados costumam considerar. Povo deve ser entendido como uma composição de pessoas reais, indivíduos humanos que têm, para além das necessidades materiais, também desejos, vontade, voz, braços e pernas, raciocínio, iniciativa, valores, etc. capazes de porem-se, com altruísmo, ao enfrentamento dos maiores riscos e desafios em defesa da sua dignidade.

6) AS CONDIÇÕES OBJETIVAS E SUBJETIVAS JÁ EXISTEM.

Como, concretamente, tornar isto possível? Não é necessário, como as esquerdas em geral analisam, acontecer um momento de crise generalizada para que as massas possam se envolver em algum processo libertário concreto. A história tem demonstrado que esse processo não ocorre como uma fórmula determinista. Mesmo nas conjunturas adversas é possível e necessário construir a luta coletiva pela libertação. Aliás, ao contrário do que comumente se imagina, não há dificuldades tão grandes e intransponíveis para uma ação direta nesse sentido.

Na verdade, com os instrumentais, digamos, organizativos que hoje existem, fruto de todo um processo histórico de lutas e avanços democráticos a nível mundial e com o atual acumulado de uma subjetividade coletiva amadurecida na experimentação dos valores e desafios diversos suscitados pela modernidade, sobretudo a partir da década de 60, ouso dizer que já há as condições OBJETIVAS e SUBJETIVAS necessárias para que a médio e longo prazo possamos ver acontecer a ruptura, a partir da intervenção popular, dessa estrutura opressora em que vivemos, sobretudo nos países oprimidos e, em especial, no nosso país.

7) CONCLUSÃO: É PRECISO ALTRUÍSMO E COMPAIXÃO

Em outras palavras, não estamos saindo do zero para o início de um profundo processo transformador da nossa sociedade. A análise da conjuntura não pode nos confundir no prognóstico estratégico: as condições SUJETIVAS e OBJETIVAS para as necessárias transformações estruturais, conforme acima, estão aí, como nunca, em situação de potencialidade. Mas do que a fatores externos, cabe hoje aos homens e mulheres de bem, em especial aos que detêm instrumentais importantes que podem ser postos à disposição da luta e organização coletiva, o desafio de atuar da forma correta para que o processo a ser iniciado possa tomar projeção popular/ de massas e seguir caminho.

A forma correta, vale repetir, é ter o povo rigorosamente sempre como protagonista das ações táticas e estratégicas. Para tanto, é preciso que as pessoas de bem e suas organizações estejam imbuídas de valores realmente altruístas e de compaixão, esperando profundamente servir e não serem servidas, esperando “desaparecer” para fazer crescer a ação coletiva e, neste processo, fazer surgir a vanguarda revolucionária autêntica. É preciso entender que os instrumentais institucionalizados só têm sentido se forem colocados à disposição do povo para ajudá-lo no processo de crescimento organizativo e social. Há que se trabalhar junto com o povo, não pelo povo.


Rinaldo Martins de Oliveira
MARÇO/09

Nenhum comentário:

Postar um comentário