quinta-feira, 21 de maio de 2009

A CRISE DA FÉ ANTROPOLÓGICA

Neste início de milênio, não só os povos, mas também os militantes que atuam no campo social, sindical, político, religioso, acadêmico ou cultural, a nível mundial, estão, em sua esmagadora maioria, sofrendo a sua pior crise: a crise da fé na promessa de um mundo novo e de homens novos vivendo valores humanamente autênticos.

Sem este paradigma, muitos têm simplesmente abandonado a luta e outros partido para atitudes imediatistas, amarradas à idéia de que mudanças precisam ocorrer a curto prazo, a todo custo. A princípio, o argumento formal para justificar tal pragmatismo recai na situação desesperadora que as massas estão vivendo. Não obstante, se aprofundada a reflexão a respeito, a conclusão será que o que realmente está em questão não é a luta contra a realidade opressiva social mas, concretamente, a legitimação de uma demanda particular e subjetiva que intenta o saciamento de expectativas existenciais ainda em vida.

A fé que se vai perdendo, nestes tempos da imposição dos valores do hiper-individualismo (uma fase nova e inédita na alma da humanidade), é a fé antropológica que tem como fundamento a história de luta e o exemplo da coerência de homens e mulheres do passado que dedicaram sua vida e existência à causa da liberdade e libertação popular a partir da defesa de valores e princípios.

Na medida que essas figuras históricas se diluem no campo de referência das pessoas, dos povos e da própria militância ideológica, é inevitável que já não se queira mais apostar na capacidade humana de fazer, um dia, valer como absolutos e exclusivos, nas inter-relações, inclusive com o cosmos (ou natureza), os valores da liberdade, fraternidade e igualdade, contra os anti-valores impostos pelos poderosos. No lugar dessa aposta opta-se pelas falsas soluções e saídas que, nada mais representam que uma adequação às regras determinadas pelo poder opressor.

De fato, não é novidade que os homens passem por crises e abalos dessa fé antropológica. Na verdade, desde o início da nossa existência humana, nunca deixamos de viver em tal situação, no nível individual e coletivo. Pois toda fé é necessariamente sustentada a partir de uma intuição (e não numa certeza científica) de que o mundo e a existência têm um propósito e fim mais profundo do que o verificado empiricamente, exigindo, portanto, uma adesão gratuita e livre o que se faz sempre um conflito.

Não obstante, observamos hoje que, em decorrência de um processo complexo de dominação das forças da cultura imposta pelo capitalismo, uma nova ordem na convivência humana, centrada no exagerado individualismo, acentuou esta crise de fé antropológica provavelmente a um nível nunca antes atingido na alma humana, fragilizando sobremaneira a todos.

Pela primeira vez, o homem é atomizado pela cultura dominante. Os apelos ao exercício da dimensão egóica nos indivíduos têm sido provocados até o limite. As estruturas sociais, em seus mínimos detalhes, vão sendo moldadas, cada vez mais, com o fim de dar vazão total a essas demandas. Desaparece, com isso, rapidamente o paradigma do “nós” que, mal ou bem, sempre permeou o iderário coletivo de todos os povos, inclusive os da civilização ocidental. O paradigma do “eu” passa a ser o centro e o eixo de uma nova relação na sociedade, onde o “outro” perde a sua essência, dignidade e autonomia reduzindo-se a um mero objeto descartável dos interesses e satisfações particulares de cada um.

Enfim, a crise da fé antropológica agrava-se hoje justamente porque essa atual cultura do hiper-individualismo vai profundamente de encontro aos valores que concebe a existência humana como um processo progressivo de construção de solidariedade entre as pessoas e povos. Tudo, na atual cultura, tem abalado a fé no homem e no futuro da humanidade. Nela importa unicamente o viver a lógica do “aqui e agora”. Esta lógica atinge o campo privado a partir do culto ao ter e ao consumir. Atinge o campo político (público), através do “pragmatismo” que substitui princípios por meros oportunismos conjunturais.

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Segue abaixo passagens preciosas que indicam o que significa a Fé Antropológica:

ROGER GARAUDY (escreveu quando ainda era comunista):

“Cada um dos meus atos libertadores e criadores implica no postulado da ressurreição, mais do que qualquer outro ato revolucionário. Porque, se sou revolucionário, isso significa que a vida tem um sentido para todos. Como poderia eu falar de um projeto global para a humanidade, de um sentido para a História, enquanto que milhares de milhões de homens no passado foram dele excluídos, viveram e morreram... sem que sua vida e sua morte tivessem um sentido? Como poderia eu propor que outras existências se sacrifiquem para que nasça essa realidade nova, se não acreditasse que essa realidade nova contém todas as outras e as prolonga, ou seja, que eles vivem e ressuscitam nela? Ou meu ideal do socialismo futuro é uma abstração, que deixa aos escolhidos futuros uma possível vitória feita à base de aniquilamento das multidões, ou tudo acontece como se minha ação se fundamentara sobre a fé na ressurreição dos mortos. Esse é o postulado implícito de toda ação revolucionária e, mais geralmente, de toda ação criadora”.


MARCEL PROUST

“Talvez o nada seja o verdadeiro, e todo nosso sonho, inexistente; mas sentimos que, nesse caso, seria necessário que essas frases musicais, que essas noções que não existem a não ser em relação a ele, fossem também nada. Pereceremos, mas temos por reféns essas divinas cativas que seguirão nossa sorte. E – com elas – a morte tem algo de menos amargo, de menos inglório, talvez também de menos provável”.
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Enfim, a pergunta principal que hoje precisamos responder, frente a essa terrível realidade da perda da fé antropológica, é: o que, a final, dá sentido à existência humana?

Rinaldo Martins de Oliveira
Maio 2007.

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