quarta-feira, 20 de maio de 2009

A EXCOMUNHÃO, A OPINIÃO PÚBLICA E A QUESTÃO DA LIBERDADE HUMANA

Assunto: sobre a polêmica do aborto da menina de 9 anos

Que a recente atitude de Dom José Cardoso, Arcebispo de Pernambuco, da ala ultra-conservadora da Igreja, foi truculenta, absurda, anti-humana e anti-cristã, ao declarar excomunhão dos que consentiram e realizaram o aborto na menina de 9 anos (grávida de gêmeos), isso não mais precisa ser enfatizado, tamanha a quantidade de opiniões publicadas nesse sentido nos últimos dias.

A questão não abordada até agora é o motivo político por trás desse ato. Este é assunto que merece uma cuidadosa análise pois expõe uma realidade submersa mas altamente nociva à sociedade. No meu parecer, a ação do bispo faz parte de toda uma estratégia de retomada do poder político e ideológico sobre as populações (sobretudo as historicamente católicas, como a nossa) formulada pelos que detêm o controle sob a Igreja, com participação de alguns setores das elites burguesas.

Em primeiro lugar, há de se indagar: por que um alto clero, de repente, decide polemizar e provocar imediatamente a sua própria execração pública, com uma atitude de absoluta intransigência e arrogância, inclusive com declarações fascistas insinuando supostas diferenças morais entre o estupro e o aborto, criando, enfim, um repúdio da população à Igreja, como talvez, no nosso país, nunca tenha ocorrido com tanta força?
Outra pergunta: por qual motivo um arcebispo se colocar com tamanho radicalismo e simplismo em torno de um caso dificílimo, delicadíssimo e particularíssimo, como o em questão, quando justamente exigia todo cuidado de uma análise profunda e ampla para não suscitar mal-entendidos, preocupação, aliás, que as autoridades da Igreja no Brasil sempre demonstraram ter ao fazer qualquer declaração pública?

Ainda dentro da indagação acima: por que, afinal, o religioso nunca se posicionou publicamente com a mesma disposição de polemizar e fazer valer as suas supostas prerrogativas eclesiais, por exemplo, em relação aos milhares casos de abortos, de todos os tipos e por todos os motivos, ocorridos todos os anos na circunscrição de sua diocese, em estabelecimentos, quase sempre, de conhecimento público? Conclusão: há algo de muito estranho e mal explicado em toda essa história.

Acontece que Dom José Cardoso pertence ao grupo dos que, já há décadas, controlam o poder político-burocrático sobre a Igreja, liderado por Joseph Ratzinger, o atual Papa Bento XVI. O bispo foi designado por João Paulo II, em 1994, para assumir a arquidiocese de Olinda e Recife com um propósito muito claro: destruir todo o trabalho pastoral coordenado por Dom Helder Câmara. Em poucos meses do novo bispado, praticamente todos os projetos, há décadas desenvolvidos, muito bem estruturados e altamente mobilizadores, foram liquidados. As CEBs, pastorais, movimentos e instituições internas, etc., todos fechados ou reorientados, e suas lideranças históricas, afastadas. Ao ponto de dizer-se que lá ocorreu uma espécie de AI 5 eclesial. E o ato ainda está em pleno vigor.

Pois bem. A análise que alguns sociólogos da religião e teólogos conhecedores dos bastidores da Igreja têm feito, já há muitos anos, é que esses setores dominantes na Igreja nunca aceitaram o fato do seu tradicional poder sobre as massas e os indivíduos ter sido diluído nas últimas décadas do século XX. Efetivamente percebem que houve uma vertiginosa perda da sua autoridade no sentido da imposição de valores e comportamentos. Esse acontecimento foi e continua sendo entendido como um mal imposto pelas forças diabólicas, sobretudo suscitadas a partir do advento da chamada “modernidade”.

Em outras palavras, o que predomina nesses setores eclesiais é a idéia de que a modernidade e tudo o que ela trouxe no seu bojo, desde o século XVIII, com poderio total no século XX, representa o advento do anti-reino, ou a chegada do anti-cristo anunciado no Apocalipse. Portanto deve ser ferozmente combatida, com o mesmo espírito que se adotou nas Cruzadas, para que se restitua o reinado de Deus na Terra tendo a Igreja como a sua administradora principal.

Nessa linha de raciocínio, conclui-se fazer necessário a ruptura com o paradigma mais importante desenvolvido pela modernidade: a questão da Liberdade. Na sua concepção, a liberdade humana é um valor maligno pois responsável principal pela substituição da ordem perfeita estabelecida por Deus para a comunidade humana, pela ordem centrada nos valores “pecaminosos” do homem. É justamente por causa do predomínio dessa liberdade (ou dos “exageros de liberdade”) que as sociedades têm sofrido e vivido cada vez mais o caos. A verdade é que tudo isso, obviamente, não se escreve, mas está na mente e nas ações desses setores dominantes.

Ocorre que na medida em que a questão da Liberdade – que, ao contrário do que entendem os grupos dominantes eclesiais, é a essência e fundamento de toda a existência humana e definidora de todas as suas dimensões – venha ser defendida e, principalmente, praticada pela sociedade sobre um prisma superficial, alienado e desvirtuado, ou seja, contrário aos seus próprios fundamentos (como é o modelo imposto pelo sistema dominante capitalista), as conseqüências negativas criadas por tal deturpação fortalecem a tese retrógrada de que a Liberdade, em si mesma, é danosa.

Além disso, esses setores eclesiais, acreditando fortalecidos em seus argumentos em vista da crise social, acabam mesmo forçando situações-limite, como o feito pelo bispo, com o objetivo de tentar antecipar a implosão das estruturas da modernidade que julgam já estarem abaladas.

Obviamente, tudo isso, não passa de uma ficção e uma ilusão, pois não há possibilidade de retorno da sociedade aos tempos da cristandade onde a Igreja exercia o domínio total. A questão do crônico problema social que estamos vivendo, já há muito, nunca esteve minimamente ligado a um suposto “exagero de liberdade”. Tem suas origens justamente na falta do exercício coletivo da verdadeira Liberdade humana.

De qualquer forma, apesar da loucura defendida, parece-me que o objetivo do arcebispo, ao suscitar a referida polêmica, está muito além de apenas imprimir uma posição moralista. Sustenta-se mesmo nessa estratégia das elites eclesiais, com apoio de alguns setores da burguesia, visando a reconquista do poder “espiritual” ( que nada mais é do que o controle político-ideológico) sobre as sociedades a partir da diluição, no próprio meio destas, do princípio da Liberdade que os tempos modernos, pelo menos teoricamente, fizeram emergir nas consciências e, de alguma forma, nas estruturas sociais.
No episódio em referência da polêmica da excomunhão, tal objetivo tático foi de alguma forma alcançado. Em primeiro lugar, quando a Igreja foi exposta, como um todo, por uma atitude isolada e inconseqüente de um bispo. Sabe-se que a Igreja, desde o Concílio Vaticano, em 1960, foi levada a reconhecer, como de fundo cristão, diversos valores suscitados pela modernidade. Essa postura, sobretudo, traduziu-se na necessidade de posicionar-se em defesa dos pobres contra a exploração e injustiças, ou seja, em defesa da sua libertação.

Desde então, os setores conservadores, com a ajuda da burguesia, não têm poupado esforços para ver destruídos os diversos desmembramentos políticos, teológicos e pastorais daquele encontro histórico. Uma das tentativas tem sido justamente essa praticada pelo referido bispo: “queimar” a própria Igreja. Quando Dom José Cardoso confronta-se com a opinião pública, objetiva claramente disseminar a falsa idéia de que sua posição - nada moderna - seria a mesma de todo o conjunto da Igreja Católica. Ou seja, o que o bispo fez, de concreto, foi tentar acuar os setores progressistas da Igreja (como os que atualmente comandam a CNBB), impondo-lhes a difícil tarefa de tentar desmenti-lo, o que, obviamente, não conseguiram fazer tamanho o desgaste por ele causado.

Outro propósito, bem mais amplo, também pôde ser atingido com algum êxito pelo referido bispo e seus tutores. Trata-se de ter conseguido atiçar fortemente na opinião pública, da mais espontânea à mais elaborada, uma série de discursos calcados em valores os mais superficiais e contraditórios no que se refere justamente à liberdade humana. A situação provocada serviu para que as pessoas, de um modo geral, viessem a dar vazão à sua visão comumente equivocada sobre a questão do aborto, calcada, aliás, na mesma razão degenerada do individualismo liberal.

Há o fato de que os já tradicionais argumentos pseudo-feministas do aborto ser um “direito” de escolha da mulher, ou uma “liberdade” sobre o seu próprio corpo, etc, baseiam-se no mesmo fundamento filosófico burguês que reivindica o “direito” à propriedade privada que é uma deturpação do verdadeiro e profundo significado da Liberdade Humana.

Na verdade, essa linha de raciocínio, conforme quase sempre sucede nos que defendem o aborto, acaba apenas polarizando, como fez o bispo no campo contrário, essa questão que é profunda e complexa. Nisso, impede a reflexão madura em torno do assunto Liberdade Humana, que deve permear qualquer discussão dos problemas sociais e existenciais.

Enfim, é conveniente para as elites, sejam eclesiais ou burguesas, que essa situação de desvio no entendimento conceitual e deturpação do exercício da verdadeira Liberdade Humana, continue e se agrave, pois enquanto essa questão não for pensada e praticada de forma mais profunda e conseqüente pela coletividade, o domínio das elites (que pressupõe a hegemonia do sentido de falsa liberdade) continuará garantido.

Um comentário:

  1. É, Rinaldo!
    Você colocou essa questão tão polêmica sob um novo enfoque, aquele em que eu ainda não havia pensado. Talvez, na minha humilde ignorancia de povo simples, naõ quizesse ver as coisas sob essa ótica... afinal, sou católica, pratico minha religião... é doloroso perceber a intenção de um representante da fé que pratico!
    Mas, prefiro não ser alienada. Minha fé continua, pois ela se baseia no Cristo vivo, no Deus do Universo, porque se dependesse dos representantes deles aqui, sei não!!!Magnífica colocação! Parabéns!

    ResponderExcluir