quinta-feira, 21 de maio de 2009

QUANDO, AFINAL, NASCE A VIDA HUMANA?(uma reflexão sobre a questão do aborto)

1. Há uma confusão terminológica em torno da palavra “vida” que reflete concepções filosóficas divergentes na discussão da questão da legitimidade ou não do aborto. Tanto os setores defensores da legalidade do aborto, quanto a Igreja que o condena, utilizam, na referida discussão, esta palavra “vida” para identificar o surgimento do ser humano, mas a sua significação parece ser muito diferente.

2. Para os primeiros, não há vida humana, propriamente dita, enquanto o organismo constituído pela junção do óvulo e espermatozóide não atinge um certo estágio na gestação. O zigoto ainda é um organismo semelhante a qualquer outro organismo em fase inicial de desenvolvimento. A única diferença é que é gestado por gens humanos.

3. Nessa teoria o conceito de vida orgânica de um embrião humano se diferencia de vida humana. Enquanto o primeiro se fundamenta a partir do entendimento biológico que identifica vida em qualquer organismo em estado ativo (ou seja, e em situação de desenvolvimento celular), o segundo conceito, em complementação ao primeiro, recorrendo às ciências médicas, convenciona identificar vida humana somente a partir do surgimento das primeiras características corporais do indivíduo. Especificamente, isso acontece com o surgimento do sistema nervoso.

4. Enfim, os que defendem a legalidade do aborto normalmente centram sua tese justamente nesse ponto: o sistema nervoso é o que permite ao organismo o primeiro conhecimento de si mesmo (o chamado “instinto”), elevando especificamente o embrião humano, então, à condição de Ser humano, propriamente dito. Portanto, enquanto esse sistema não estiver constituído não se pode identificar ainda “vida humana” àquele embrião.

5. Para a fé católica, a vida humana nasce no surgimento da vida orgânica quando da junção do espermatozóide ao óvulo. Ou seja, toda vida física humana, seja qual for o estágio de formação do corpo, já é vida plena constituída de sua essencialidade. Mesmo ainda sem cérebro, sem coração, sem qualquer órgão, sem sistema nervoso, no primeiro segundo de existência física, o chamado ovo já é um ser que possui independência e individualidade. Não é um mero organismo indefinido, não é um mero “vir a ser” em potencial, mas é um ser que já experimenta a sua constituição de ser humano ainda que obviamente sem o mínimo conhecimento de si mesmo (ou seja, ainda não possuindo sequer o instinto sensitivo).

6. Esta convicção da Igreja, de fato, está calcada não na ciência biológica ou médica, mas exclusivamente nas razões da fé. Tem-se fé que, para todo ser humano, Deus designa uma identidade própria e única - em termos religiosos: uma alma -, cabendo tão somente a Ele, e não a nós, o conhecimento de quando ou como essa alma se identificará com o corpo em gestação. Vislumbra-se como provável que já na concepção física entre os gens feminino e masculino também ocorra a concepção da alma que se vai misteriosamente desenvolvendo junto com o crescimento do corpo. De todo modo, o certo é que este é um mistério de Deus que nunca será possível ao homem desvendá-lo.

7. Mas pode-se perguntar: se o que se está afirmando é que a base de sustentação da posição da Igreja pela ilegalidade do aborto é calcada na razão subjetiva da fé e não na razão objetiva científica, como não aceitar também como legítima (não se confundindo como verdadeira) a posição contrária? Essa é uma boa pergunta.

8. Em primeiro lugar, a verdade, nesta história, ao contrário do que muitos pretendem transmitir na mídia e nos debates, no sentido de estigmatizar a Igreja e seu discurso oficial como sendo “conservador”, “moralista”, “impositivo”, observa-se que o orgulho e a intransigência, ou seja, o espírito nada aberto ao diálogo está sim normalmente nos que defendem a concepção da legalidade do aborto e não na Igreja, ainda que muitos religiosos também cometam essa mesma arrogância. A Igreja, como defensora de uma doutrina oficial - repita-se - assume com tranqüila firmeza que sua convicção contra o aborto é e sempre será objeto motivado pelas suas profundas conclusões de fé, portanto baseada realmente em critérios subjetivos (o que não confunde com critérios irracionais). Já os que defendem o aborto têm muitas vezes a falsa presunção de achar que sua convicção é proveniente de razão científica. Aqui reside hoje o maior fundamentalismo.

9. O problema nessa postura é que, para se fazer valer, precisa reduzir a individualidade caracterizadora do ser humano a um enigma que seria supostamente perfeitamente decifrável. Tenta-se fazer isto, como já dito, delimitando o surgimento do ser humano no momento do surgimento dos primeiros neurônios, ou mais precisamente, no momento do nascimento do “intelecto”, entendendo este de forma mais ampla, como o mecanismo interno do organismo humano que o torna capaz da compreensão de si mesmo (como já dito, ainda que, no primeiro estágio, apenas de modo sensitivo).

10. Mas é preciso perguntar se intelecto é apenas isto mesmo: um mecanismo de autocompreensão em princípio, no nível sensitivo e, posteriormente, também no nível racional. O grande estudioso Carl Jung, já no início do século XX, desenvolveu os conceitos que denominou “inconsciente coletivo” e “arquétipos” afirmando que o ser humano carrega em si informações acumuladas pela humanidade no decorrer da sua história existencial e não só aquelas experimentadas na vida individual (como Freud concebeu). Em um outro diferente campo científico, a biofísica descobriu, décadas depois, que no núcleo central das células estão o DNA, gens repletos de inúmeras informações que aleatoriamente determinarão, dentre outras coisas nos seres humanos (e vivos), o seu biotipo, dando-lhes características próprias, únicas e particulares, entre si.

11. Só por estes dois exemplos acima, que de alguma forma se relacionam, podemos dizer que, no mínimo, há sérias controvérsias em reduzir o “intelecto” exclusivamente às ações neurais que dão sensitividade e racionalidade aos seres humanos. Por que não ampliar o entendimento do intelecto, dentro da própria concepção que entende que é só a partir dele e através dele que nasce o ser humano, como algo originário ainda antes da ativação dos neurônios, ou seja, resultante das informações contidas em TODO o conjunto do corpo, que serão levadas aos neurônios para serem decodificadas em “linguagem” sensitiva e racional? Em outras palavras: como não entender que o conhecimento de si mesmo é fenômeno resultante do conhecimento em si mesmo que todo organismo, sobretudo humano, já trás na sua origem? Melhor ainda: Como não aceitar como, no mínimo, razoável a tese de que este conhecimento em si mesmo do organismo humano é que determina a essencialidade do ser humano, para além do conhecimento de si mesmo, este nascido posteriormente e em decorrência daquele?

12. A rápida abordagem acima só serviu para demonstrar que não é tão exata assim a idéia da existência de vida humana só após um determinado estágio da gestação - o surgimento do sistema nervoso - como se propaga. Não é esta uma certeza científica, mas também uma convicção baseada em crença, ou melhor, numa certa concepção filosófica da existência humana.

13. Enfim, para que a questão do aborto possa ser abordada com maturidade, ambas as partes, defensores e não defensores, devem levar em conta a famosa frase de Sheakspeare: “há mais entre o céu e a terra do que suspeita a nossa vã filosofia”. Só aí se compreenderá que a discussão, na verdade, só está começando. Vivemos numa sociedade laica e democrática (pelo menos teoricamente). Ninguém deve ser mais obrigado a aceitar imposições de ideologias e filosofias. Não obstante, o debate precisa ser calcado em cima da humildade, admitindo-se, ambas as partes, que não se trata de uma questão técnico-científica ou dogmática, mas essencialmente filosófico-existencial. Este é o primeiro desafio e o pressuposto para o aprofundamento do diálogo.


Rio de Janeiro, 05 de março de 2008.

RINALDO MARTINS DE OLIVEIRA

Nenhum comentário:

Postar um comentário