quinta-feira, 21 de maio de 2009

O NATAL E A IMPORTÂNCIA DO TESTEMUNHO DE FÉ

É notório que os quatro Evangelhos canônicos foram escritos movidos por uma preocupação essencialmente catequética: a de ajudar as comunidades cristãs, que surgiam naquele momento, na reflexão e seguimento do Mestre.

O Natal, conforme encontrado em Mateus e Lucas, dentro desse contexto, é relatado não com o mero objetivo de ser um registro histórico do início da vida de Jesus de Nazaré, mas com o propósito de se oferecer como uma “chave”, dentre outras tantas que podemos vislumbrar na leitura dos evangelhos, que permite uma abertura interpretativa para o entendimento do complexo e misterioso significado da morte e ressurreição de Cristo.

Esse evento pascal, inquestionavelmente, se impunha como assunto central às comunidades que se formavam em torno dos apóstolos e discípulos de Jesus, tornando-se paradigma para o entendimento de toda a passagem histórica do Messias na Terra e de todo o Antigo Testamento.

Nas referidas narrações evangélicas natalinas, chama-me especial atenção como os evangelistas “trabalham” a caracterização dos personagens que compõem tal cenário, muito provavelmente com o intuito de remeter a cena à realidade vivida pelos cristãos de então e demais pessoas frente ao grande e difícil desafio de aceitação do testemunho dos que afirmavam ter presenciado a ressurreição de Jesus.

Concentrando-nos na reação de cada um dos personagens do início dos evangelhos de Mt e Lc, diante da anunciada concretização do projeto de Deus, que seria a vinda, ao mundo dos homens, do “filho de Deus”, podemos observar a pretensão didática de se destacar duas posturas opostas: uma, a de Maria que, movida pela fé, demonstra profunda abertura para aquele projeto misterioso e glorioso em curso; outra, a dos demais personagens, que apegados a uma visão “humana, demasiadamente humana” do mundo e da existência, não conseguem entender e, conseqüentemente, aceitar nada que fuja do seu padrão paradigmático.

Maria aceita a missão, anunciada pelo anjo, de gerir o Salvador com a frase: “Eis aqui a escrava do Senhor. Aconteça comigo segundo tua palavra” (Lc, 1,38). São poucas e profundas palavras registradas para imprimir uma imagem exata da reação firme e decidida da Mãe de Deus, diante do miraculoso e sobrenatural anúncio. Quanto à indagação de Maria ao anjo de como a sua gestação, na prática, se faria possível (“Como poderá ser, pois não conheço homem?”, Lc 1,34), a mesma não reflete uma incerteza. Pelo contrário, está registrada justamente para reforçar a tese do evangelista da profunda segurança de Maria: por estar totalmente convicta de que Deus tudo pode para realizar o seu desígnio, Maria permite-se até mesmo o direito de indagar como o processo ocorrerá.

Reação absolutamente contrária encontramos, em primeiro lugar, em José, noivo de Maria. Ao ter o conhecimento da gravidez de Maria, mesmo certamente com a explicação do fato vinda por ela própria, decide ainda sim abandoná-la (cf. Mt 1,19). Ou seja, não acredita, de início, em suas palavras. Zacarias, esposo de Isabel, também duvida da possibilidade do nascimento de seu filho João, mesmo sendo anunciado pelo próprio anjo do Senhor, chamado Gabriel, como parte do Projeto glorioso de Deus (cf. Lc 1,17-18).

No campo externo, encontram-se os magos que apesar de não duvidarem do nascimento do “rei dos judeus”, conforme previa a antiga profecia, ainda sim depositam essa confiança, não na fé, mas no estranho fenômeno cósmico do surgimento ou brilho de uma estrela no Oriente (cf. Mt 2,2), certamente captado por observação científica (magos = cientistas da natureza). Tanto ignoram o significado verdadeiro e a dimensão mais profunda desse nascimento, inclusive toda a sua implicação política, que, ingenuamente, vão procurar justamente o rei Herodes para indagar a localização do “rei dos Judeus” que acabara de nascer, entendendo eles que fosse para esse último também um acontecimento positivo.

Em resumo, a partir dessa contraposição entre a atitude de diversos personagens envolvidos na mesma trama do nascimento de Jesus, os evangelistas querem retratar similar problemática posta com a questão, já então tornada pública para milhares de pessoas, do fenômeno da Ressurreição de Jesus.

Ou seja, tal como Maria, receptiva às palavras anunciadas pelo anjo, há os que estariam também abertos para aceitarem como verdadeiros os testemunhos dos apóstolos e discípulos, acerca do anúncio da ressurreição. Entretanto, tal como José, Zacarias e os Magos, há também os que estariam tendendo – como seria naturalmente o mais provável que ocorresse com a maioria dos membros das comunidades – para grandes incertezas e inquietações a respeito dos testemunhos oculares do fato, afinal, extraordinário e absolutamente único na história humana.

Não obstante, os relatos natalinos não param por aí. Cuidadosamente, após deixarem impressa a diferenciação da conduta firme de Maria e incerta dos demais personagens, partem para um segundo plano onde se destaca o processo de transformação interna nesses últimos (cf. Mt, 1,20, Mt 2,12 e Lc 1,20), a chamada conversão, que lhes possibilita finalmente o entendimento mais profundo do projeto de Deus em curso na figura de Jesus.

Essa transformação que se opera em José, Zacarias e nos magos se dá a partir do testemunho de fé de Maria. É com base na profunda seriedade e convicção com que Maria assume o seu papel de gerir e ser mãe do Filho de Deus, que tais personagens se convencem da veracidade dessa “Boa Nova”. Não é algo que se possa ler explicitamente nos Evangelhos, mas que se faz concluir pelo bom senso, desafio interpretativo que os livros sagrados nos convidam, a todo momento, a fazê-lo.

José, pelo que conhecia a grande pessoa, cheia de virtudes e valores, que era Maria, convence-se pelo anjo a recebê-la. Mas não um recebimento passivo e resignado. Ele mesmo, agora, se faz confiante no projeto que se anunciou primeiramente a Maria (cf. Mt 1,20-23).

Zacarias, já após seis meses de reflexão sobre o anúncio do anjo a respeito da gravidez de sua esposa e sobre os planos de Deus inerentes a essa gestação, deve ter aprofundado ainda mais a reflexão desse mistério, de forma decisiva, quando da visita de Maria a Isabel. Ali se registra o efeito grandioso que a saudação daquela mulher, escolhida entre todas e grávida de Deus, provocou na criança (João) no seio de Isabel, fenômeno que a Igreja interpreta como sendo o batismo do Espírito Santo em João e que produziu nessa última a exclamação que mais profundamente caracteriza e qualifica Maria: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre!” (Lc 1, 42).

Quanto aos magos, certamente há uma reação de grande surpresa com a realidade que encontram ao se depararem com Maria e Jesus na manjedoura. Levam presentes – ouro, incenso e mirra – comumente oferecidos a príncipes e reis. Muito provavelmente os evangelistas querem passar que os magos não esperavam que o “rei dos judeus” pudesse nascer tão destituído de poder, advindo de uma família tão humilde como aquela. Não obstante, o maravilhoso clima de transcendência da realidade com que Maria deve ter impresso à circunstância, certamente marcara profundamente a mente e coração dos magos que, “avisados em sonho de não retornarem a Herodes, voltaram para sua terra por outro caminho” (Mt 2,12). Uma demonstração clara e explícita de mudança radical da compreensão daquele acontecimento, comprovada pela decisão muito grave que tomaram e que os tornaria inimigos do rei Herodes (e, por conseguinte, de todo Império Romano), acabando por motivar a matança dos inocentes, conforme Mt 2, 16-18.

Enfim, a partir dessa rica reflexão do processo interno de mudanças de paradigma e resgate da fé, ocorrido entre tais personagens da cena natalina, suscitado sobretudo pelo reconhecimento da autoridade (testemunhal) de Maria, é que as comunidades cristãs, que começavam a conhecer os escritos copilados nos Evangelhos, poderiam também fortalecer a certeza da factualidade do fenômeno pascal, conforme testemunhado pelos apóstolos e discípulos de Cristo.

Trata-se ali de uma influência, ainda que indireta, da mais apurada hermenêutica paulina que pretende dar resposta às inquietações das comunidades cristãs sobre o real ocorrido em relação ao fenômeno da Ressurreição do Mestre Jesus. A fé nesse acontecimento fenomenal não poderia se consolidar não houvesse sido testemunhado concretamente por alguns.

Concluímos, daí, que a fé nAquele que “ressuscitou dos mortos”, desde o início do cristianismo nunca foi algo dado. Ou seja, mesmo para aqueles homens e mulheres das primeiras comunidades cristãs que viveram tão próximos da ocorrência temporal do evento, a construção dessa fé só se fez possível por conta da fé no testemunho transmitido pelos poucos que presenciaram de perto as aparições físicas de Jesus.

Jesus se apresentou em carne e osso exclusivamente a esses poucos não com o propósito de lhes dar esse “privilégio”. A verdade é que Jesus, desde o início da sua vida pública, preparou-os para que pudessem melhor testemunhar à humanidade esse ocorrido e o Novo Testamento mostra fartamente que o fizeram à altura da missão designada pelo Senhor, não poupando sacrifícios pessoais.

Portanto, podemos entender que para a construção e consolidação da fé em Deus e em seus planos para a humanidade, tão importante quanto o fato concreto da Ressurreição do seu Filho está também o testemunho pessoal transmitido pelos que guardam essa fé.

Na verdade, dois milênios distantes da morte e Ressurreição de Jesus, continuamos, geração após geração, experimentando esse mistério e construindo a fé no nosso Senhor, não por outro meio senão pelo testemunho dos que se fizeram seus discípulos, conforme seu desejo (cf. Mt 28, 16-20). Em resumo: quando se diz que o seguimento de Cristo se dá a partir do encontro pessoal com Ele e adesão a Sua mensagem e à vida que Ele viveu, isso só se faz possível justamente porque podemos experimentá-lo primeiro nas pessoas que lhe dão e deram testemunho.

NATAL DE 2008.

RINALDO MARTINS DE OLIVEIRA

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