quinta-feira, 21 de maio de 2009

A GREVE DE CAPPIO E UM OUTRO PODER AOS MOVIMENTOS SOCIAIS BRASILEIROS

A greve de fome de Dom Luiz Cappio, iniciada em 26 de novembro de 2007 e que durou 24 dias, em denúncia ao projeto faraônico da transposição do Rio São Francisco, teve o mérito político não só de expor ao grande público o perfil autoritário do governo Lula mas também de demonstrar, na prática, com tamanha clareza e profundidade, como os mecanismos do populismo, nesse atual governo (“como nunca se viu na história desse país”), têm sido fartamente utilizados para legitimar políticas de interesse das elites dominantes no país.

Pela primeira vez, a blindagem “santificadora” construída pela mídia burguesa em torno da figura de Lula foi quebrada e da forma a mais imprevista, inusitada e inesperada possível. O que partidos, parlamentares, organizações, sindicatos, agrupamentos ideológicos (que a partir daqui passaremos a denominar genericamente de “movimentos sociais”) não conseguiram ou não se dispuseram fazer durante os últimos 5 anos, um bispo mendicante do interior do país, sozinho, justamente com apenas um discurso religioso e a sua autoridade moral constituída no decorrer de décadas de trabalho nas bases populares, o fez num gesto: desmascarar a farsa política do atual governo falsamente considerado “popular”.

O que queremos aqui refletir e analisar é como o exemplo de Dom Cappio, neste sentido, acabou por tornar explícito quão frágeis e contraditórios andam os movimentos sociais no nosso país. Ou seja, quão cooptados têm estado à lógica dominante de fazer política através dos recursos limitadores e comportados da institucionalidade e da mídia burguesa, deixando-os incapazes de atingir os seus próprios fins políticos.

A verdade é que por pura opção, os movimentos sociais brasileiros, nas últimas décadas, têm preferido substituir a ação direta, o testemunho pessoal, a coerência prática, a ousadia profética, pelo mero discurso, por vezes bonito e até “radical”, mas totalmente esvaziado de autenticidade e de força transformadora. Dom Cappio, em sua greve, provou que, para incomodar e desafiar os poderosos, bem como envolver a população em uma justa causa, vale mais um gesto carregado de firmeza evangélica e calcado em princípios altruístas radicais do que mil palavras elaboradas a partir de uma postura meramente teórica e conceitual frente às injustiças.

Ocorre que a dominação do capitalismo, em sua fase atual, alcançou, para além das estruturas sócio-econômicas e culturais, também os níveis psíquicos mais profundos dos indivíduos e, por conseguinte, dos grupos sociais e das massas, impondo um “estilo de vida”, ou melhor, induzindo à coletividade a uma forma de enxergar a sua própria existência e a co-existência como um lugar de disputa pelo poder nas suas mais variadas dimensões (política, econômica, cultural-filosófica, psico-afetiva, etc).

O distanciamento colossal entre a prática de Dom Cappio e a prática dos movimentos sociais diversos se explica justamente pela importância que cada um vem atribuir a este poder opressor. De um lado, Dom Cappio, em sua greve de fome, ao aceitar o próprio sacrifício pessoal e o risco de perder a própria vida como condição para denunciar o absurdo e a farsa da transposição do Rio São Francisco, nega radicalmente tal tipo de poder como recurso capaz de se impor contra as elites. Deste modo o bispo recorre a um outro poder cujas armas são exatamente opostas às do poder predominante, provando, contudo, serem mais eficazes e revolucionárias.

Em direção contrária, os movimentos sociais brasileiros sustentando-se justamente em dependência às benesses oferecidas pelos os dominantes: uma fatia do seu poder, pequeníssima, mas suficiente para desviar objetivos, corromper princípios e arrefecer sonhos. A ineficácia de tais setores no propósito de se contrapor aos projetos das elites e dos seus representantes dá-se justamente porque não há interesse de real disputa com os poderosos, disputa esta que só se pode fazer no campo dos valores e dos princípios.

A verdade é que desde o fim da ditadura militar, o recurso aos mecanismos político-institucionais fez-se, para os movimentos sociais, a sua opção tática prioritária que, rapidamente, acabou transformando-se em campo único de atuação política. Hoje as suas práticas como um todo são essas do dia-a-dia que se apresentam absolutamente inofensivas e até oportunas aos interesses do capital e do sistema dominante.

O gesto de Dom Cappio, por tal motivo, vem para sacudir e chamar os movimentos sociais àquilo que em termos religiosos se denomina “conversão”. Na Bíblia, a conversão que os profetas radicais pregam representa, concretamente, o abandono, por parte do povo e de suas lideranças, das suas práticas anteriores viciadas e acomodadas, adotando-se a práxis de um outro poder cuja característica central é a negação radical de tudo o que constitui e fundamenta o poder autoritário dominante, concentrado nas mãos de uns poucos que dominam.

Sem estas mudanças de princípio, de postura e de caráter, os movimentos sociais continuarão, ainda que convencidos do contrário, ratificando, legitimando, alimentando o domínio das elites e dando o exemplo contrário ao povo. Este também precisa ser imediatamente chamado à ruptura do comodismo, do individualismo e da corrupção moral pois só ele, unido e organizado, poderá se defrontar e derrotar definitivamente os poderosos.

Enfim, Dom Cappio preocupou-se em sua greve de fome, sobretudo, fazer um verdadeiro apelo à consciência e à conversão coletiva de toda a sociedade, organizada e não organizada. Somente uma vanguarda movida por valores e princípios altruístas radicais será capaz de mobilizar, conscientizar e organizar as massas oprimidas e, só assim, promover, coletivamente, as verdadeiras mudanças sociais que têm sido adiadas há séculos.

Rio, 22 de dezembro de 2007.

RINALDO MARTINS DE OLIVEIRA

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