quarta-feira, 20 de maio de 2009

ESCÂNDALO NA IGREJA DO RIO E A CUMPLICIDADE COLETIVA

Recente denúncia publicada no Jornal O Dia, feita por padre Abílio, atual ecônomo da Arquidiocese do Rio sob o comando do recém-nomeado arcebispo Dom Orani, envolve diretamente Dom Eusébio (ex-arcebispo) e o padre Edvino (ex-ecônomo da arquidiocese) em escândalo financeiro na gestão da Instituição religiosa carioca.

Os dois religiosos foram acusados de utilização, para fins próprios, de cerca de R$ 3 milhões da verba indenizatória paga pela Prefeitura à arquidiocese por decisão judicial. “O dinheiro sumiu”, afirmou Abílio. Noticiou-se que dentre os bens adquiridos com o recurso constou um apartamento de luxo na zona sul da cidade do Rio, cotado em mais de R$ 2 milhões, para a moradia de Dom Eusébio. Móveis arrojados e caríssimos (p.ex. um só sofá valendo cerca de R$ 22 mil, outro valendo R$ 17 mil) também foram comprados e utilizados no gabinete finamente reformado do padre Edvino dentro do prédio episcopal. Foi também determinado pelo atual ecônomo a devolução do carro importado marca Jetta, no valor de R$ 84 mil, que Edvino usava.

Além da divulgação dessas e de outras acusações de gastos e desperdícios e a crítica ao estilo de vida nada “religioso” dos envolvidos, padre Abílio também criticou o contrato da arquidiocese com a Fundação Getúlio Vargas (FGV) feito para supostos fins de modernização na administração da Igreja: “Igreja não é empresa”, criticou Abílio. O padre também denunciou o comércio de cartão de crédito que os referidos gestores teriam implementado formalmente, divulgando o produto, inclusive, nos folhetos das missas durante dois anos seguidos como uma forma de arrecadação de recursos para obras sociais da Igreja. Descobriu-se, no entanto, que o cartão não estaria vinculado à Igreja mas tão somente à associação (ASJP) que dom Eusébio e padre Edvino criaram e da qual eram, respectivamente, presidente e diretor-geral em caráter vitalício. A entidade, inclusive, até recentemente tinha sede no próprio prédio da arquidiocese e lançou um fundo de investimento.

Pois bem. É preciso analisar com muito rigor mas ao mesmo tempo com muito cuidado o fato ocorrido. Simplesmente, tratou-se de um escândalo cometido pelos gestores diretos da arquidiocese, isto não se pode esconder. Não obstante, o que mais impressiona foi como a alta cúpula do clero, ou seja, os bispos auxiliares, mas também as centenas de padres e diáconos, as diversas instituições religiosas, os 200 funcionários da arquidiocese, as lideranças pastorais ligadas ao episcopado e os leigos engajados em geral, até agora, mantiveram-se no total silêncio em relação às práticas concretas, no mínimo, polêmicas assumidas pelo referido arcebispo nos seus dois anos à frente da Igreja.

O cartão de crédito, a associação criada, o contrato com a FGV, etc., que ora são colocados em questão pelo padre Abílio, a reboque do escândalo financeiro ocorrido em março/09, já eram medidas relativamente antigas e que já demonstravam claramente o perfil administrativo duvidoso do gestor. Ou seja, deveriam, já há muito, terem sido criticadas pelos setores responsáveis da Igreja, contudo nada ocorreu.

Vale lembrar que, além de toda essa cumplicidade para com as práticas administrativas irregulares do atual arcebispo emérito, ocorreu também, nesses dois anos, de forma tão escandalosa quanto ou até pior, a cumplicidade coletiva na questão da aproximação política do arcebispo e dos setores a ele diretamente ligados, aos grupos político-partidários dominantes da cidade e do Estado do RJ. Tal aproximação culminou com o apoio, explícito e declarado, não só do bispo mas de dezenas de padres ao então candidato a prefeito, Eduardo Paes (eleito). A atitude representou total desacordo com a Doutrina Social da Igreja que explica não caber à instituição católica apoiar partidos e/ou candidatos, mas sim orientar os fiéis a procurar votar em quem efetivamente comungue dos valores e princípios cristãos na política (que objetivamente sequer seria o caso do candidato eleito, maior financiado pelos grupos econômicos dominantes).

Enfim, não se trata aqui de inocentar os responsáveis pessoais por eventuais irregularidades cometidas na investidura do cargo assumido. Trata-se, porém, de não reduzir a questão como sendo um mero ato isolado praticado por algumas poucas pessoas que foram “tentadas pelo demônio”. Até porque, deste modo, fica mais fácil o recurso do perdão, que é necessário e constituinte dos princípios cristãos, mas muitas vezes tem sido justamente um instrumento para o abafamento e desvio de uma situação de pecado coletivo, estrutural, que urge ser cuidadosamente refletido e resolvido de forma conjunta, exigindo autocrítica de todos.

Acontece que a tentação do poder não distingue pessoas ou instituições: corrompe indiscriminadamente a todos. E não só a alta cúpula dominante está vulnerável a esse pecado. Nas pequenas comunidades, grupos sociais ou privados, como há sempre relação de poder, também há o risco permanente da corrupção, que se projeta de forma variada e sutil. Talvez aí esteja a explicação do porquê da cultura de cumplicidade coletiva que impera hoje na nossa sociedade e, como demonstrou o episódio, também no interior da própria Igreja, em relação aos grandes atos corruptos praticados pelos gestores da coisa coletiva. Nos ambientes em que vivemos e atuamos, também os mesmos antivalores vêm sendo muitas vezes praticados até mesmo como um padrão de comportamento.

Por esse motivo Jesus advertiu seus apóstolos há 2 mil anos e continua nos advertindo: “vigiai e orai” (MT 26,41). E é por isso que o Documento de Aparecida, produzido pelos bispos da América Latina e do Caribe, reunidos em Aparecida do Norte, propõe uma profunda mudança de estruturas e de vida interior na Igreja. Há uma frase do papa, no item 12 do documento, que nos induz a uma reflexão profunda: “Nossa maior ameaça é o medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja, no qual, aparentemente, tudo procede com normalidade, mas na verdade a fé vai se desgastando e degenerando em mesquinhez. A todos nos toca recomeçar a partir de Cristo.”

Rio de Janeiro, 16 de maio de 2009.

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