quinta-feira, 21 de maio de 2009

O RETROCESSO HISTÓRICO DA LUTA POPULAR

Ouvindo Chico Buarque de Hollanda me veio a seguinte reflexão um tanto amargurada: Triste é a constatação de que, décadas já passadas, ainda temos que cantar as suas músicas proféticas como Vai Passar, Apesar de Você, Quando o carnaval chegar, Cálice, Deus lhe pague, O que será, Roda Viva, Samba de Orly, e tantas outra, não apenas em recordação de uma “página infeliz da nossa história”, que já teria sido virada e descartada da nossa vida, mas ainda com o mesmo tom de denúncia que as originou contra o mesmo poder dominante e opressivo que continua irremovível em suas práticas, impondo-nos a clássica ambientação de desesperança coletiva.

Para piorar a amargura, muito mais triste ainda é verificarmos que são justamente os principais inimigos e alvos das elites nos anos de chumbo no país, hoje os maiores responsáveis pela sustentação daquele mesmo projeto burguês, adotando e praticando a mesmíssima política ideológica de então e que teve e continua tendo como objetivo principal impedir o surgimento de quaisquer condições subjetivas de resistência e reação popular ao modelo econômico, social, cultural e político imposto.

Contudo, sejamos justos: não se trata aqui de acusar como traidores somente os atuais setores das esquerdas nos governos mas todo o conjunto das esquerdas, ainda que alguns segmentos se auto-intitulem “oposição”. Pois a reprodução do cenário político dos tempos da ditadura se faz presente não somente, e nem tanto, pela adoção dos mesmos modelos liberais estruturais de sempre mas, fundamentalmente, pela mesma histórica concentração do poder político decisório sobre a vida da nação e sobre o destino das massas nas mãos de uma pequena minoria.

Quero dizer que, hoje, as referidas esquerdas (e não mais os velhos políticos tradicionais da direita que estão quase todos em fase de extinção) são justamente estas minorias com o poder político concentrado nas mãos e que exercem o clássico papel de inibir a participação das massas e impedir o seu amadurecimento político.

A realidade é que se formos observar bem o atual quadro político brasileiro, verificaremos que quase todas as instituições públicas (governos e os seus diversos órgãos diretos e indiretos, autarquias e empresas públicas; parlamentos; Judiciário e Ministério Público) e privadas (sindicatos, igrejas, partidos, movimentos sociais e culturais, Ongs, etc) têm sido comandadas, sobretudo nas duas últimas décadas, por uma boa parte de pessoas e grupos historicamente vinculados aos campos de esquerda marxista ou cristã, que se constituíram no ambiente político justamente a partir do discurso das transformações estruturais no país.

Ao contrário, contudo, do que imaginávamos e do que nos foi prometido ocorrer quando o autoritarismo desse lugar à democracia e essas esquerdas pudessem, enfim, assumir os rumos políticos no país, a esmagadora maioria da população continuou, como sempre, invariavelmente marginalizada e submetida aos mandos e desmandos dos atuais setores organizados. E a situação ainda é pior do que no passado. Os que ora dominam, o fazem justamente aproveitando-se da sua história de luta e resistência para passar a falsa idéia de que falam “em nome dos interesses da sociedade”, criando uma espécie de “blindagem” ao seu redor, mais eficaz e resistente do que os tanques de guerra da ditadura.

Isto se dá concretamente, por exemplo, nos governos ditos “populares” do PT que simplesmente abandonaram sua principal bandeira política histórica, o chamado orçamento participativo e adotaram o assistencialismo; nos mandatos parlamentares de milhares de ex-lideranças populares e sociais hoje preocupados exclusivamente em sustentarem-se no cargo e no poder institucional; nos sindicatos, nascidos de uma ideologia anti-capitalista mas que ensimesmaram-se em torno dos interesses corporativistas de suas categorias, tornados meros sindicatos-empresa prestadores de serviços; nas igrejas, ontem inspiradas na teologia da libertação, agora reenclausuradas e enquadradas no discurso abstrato pós-moderno da “salvação do planeta” afastando-se por completo do centro dos Evangelhos que é pobre oprimido e do conceito da luta de classes; nos movimentos sociais que do lugar privilegiado da participação e ação direta das bases populares reduziram-se a promover reivindicações isolacionistas em benefício dos seus próprios integrantes; nas ONGs criadas por setores intelectuais em alternativa e resistência ao controle do Estado burguês, mas que hoje se aproveitam dos recursos orçamentários do mesmo para desenvolverem projetos de interesses dos setores privados capitalistas, etc.

No meu ponto de vista, o retrocesso histórico deixado por tais setores esquerdistas já é grande e se ampliará ainda mais no decorrer dos próximos anos. O fosso de desesperança que estão deixando, infelizmente, será mais profundo do que o deixado pelo próprio regime militar, pois agora cavado por mãos amigas, por mãos dos que um dia prometeram o contrário ao chegar nas instâncias deliberativas: enterrar os males, vícios e anti-valores impostos pelos poderosos através de seus representantes, durantes séculos. Pelo visto, os representantes mudaram, não os poderosos.

Frente esta deplorável situação, há de se construir uma nova esquerda. Isto, certamente, não se dará a curto prazo e muito menos, obviamente, com a intensificação da cartilha do pragmatismo político que estamos vendo contagiar a quase todos, no país e no mundo. Aliás, é justamente a ruptura com o pragmatismo político que hoje se faz o maior desafio a uma futura esquerda autêntica. Isto só ocorrerá com a implantação de novos valores e princípios onde o pobre, o oprimido e a vítima do sistema de poder capitalista sejam situados como o centro estratégico e os protagonistas das mudanças estruturais.

A circunstância conjuntural requer paciência aos quem se mantêm insistentes em seus sonhos e ideais de libertação. É preciso a clareza de que fora esta luta em defesa dos valores e princípios libertários, tudo o mais é ilusão, corrupção moral e passará deixando apenas más lembranças.

O momento é de manter a esperança, a vigilância e a perseverança para que as futuras gerações possam fazer desse legado uma referência firme para sustentar e dar forças às suas lutas pela libertação que certamente virá, quando poderemos, enfim, cantar as músicas de Chico sem mais a agonia de ainda as estar vivendo como promessa.

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